ARTIGO - Afinal, quem faz a música?

Estamos vivenciando no meio autoral da música em relação aos contratos antiquíssimos sobre a titularidade de obras musicais quando se escolhia e ainda se escolhe uma editora para administrar sua criação intelectual, muitos contratempos.

Ocorre que há falta de entendimento sintático da Lei do Direito Autoral de nº 9.610/98 em sua quase totalidade dos seus dispositivos. É perseverante alguns entendimentos nos tribunais que um contrato de cessão significa a transferência da propriedade da música para a editora, tendo ela total e irrevogável poder sobre a obra.

Sim, isso vale para esses contratos, desde os anos 70, quando o que vigia era a lei do Copyright um direito anglo-saxão que dá apenas o direito de cópia da obra nos países das editoras multinacionais de onde elas vieram, ou seja, elas chegaram e se estabeleceram no Brasil praticando contratos, tendo relações jurídicas com cláusulas dessa lei, não se adequando às leis brasileiras. 

Passa-se o tempo e em 1998 é sancionada pelo então presidente da república Fernando Henrique Cardoso, a Lei de nº 9.610 atualizando as leis do Direito Autoral que já alcançou a tecnologia digital à época, morrendo quase totalmente a reprodução de gravação de fonogramas analógica. Com essa lei, abrangeu-se a proteção além da obra, anteparando o autor, pois uma obra criada por um ser humano, partiu da construção, da feitura intelectual personalíssima do autor, como também chamam alguns doutrinadores jurídicos, de "criação do espírito", por ser a obra tão singular e ter características inigualáveis. Exatamente por isso clareia-se a realidade da ligação de nascituro do autor com a sua criação, como se fosse a relação eternamente biológica e imbatível de um pai ou uma mãe com seu filho mesmo que adotado. É metaforicamente genético.

No contexto da criação intelectual nas relações jurídicas contratuais não há de se falar em transferência de propriedade nesses contratos mencionados, mas sim como os caputs dos próprios contratos, há a transferência de direitos patrimoniais, os quais são provenientes da obra já criada, já existente, já responsabilizada em cláusula como sendo de real autoria do compositor, a fim de que ele possa sobreviver de seus direitos autorais (suas remunerações). Assim sendo e se mantendo o autor sobre domínio de sua criação- completamente dono da obra – diferente de que pelo serviço da editora estipulado em contrato há um percentual para licenciamentos de reproduções. 

Há dois casos de ações sendo julgadas pelos tribunais brasileiros como por exemplo os autores Roberto Carlos e Erasmo Carlos e Antonio Barros e Cecéu, em que persistem entendimentos dentro da seara do direito civil das coisas materiais, quando esse contexto deveria ser entendido como ele o é, no caso da música: imaterial. Percebe-se nisso também, eu quero crer, uma falta de conhecimento dos transtornos que muitos compositores passam nas mãos de algumas editoras musicais. Há delas que sequer informam o básico como o demonstrativo de onde vieram os licenciamentos/utilizações e pagamentos, como as cópias dos contratos. Eu mesma como filha de compositores e administrando muitas de suas obras, ao reivindicar a proteção jurídica a uma das obras para uma editora, ouvi por telefone do próprio presidente da editora, a negativa da solicitação, a qual é obrigação contratual, de qualquer uma delas.

O que desponta aqui neste caso é uma afronta, um ultraje moral ao autor, dessa vez, não cometidos por qualquer usuário de sua obra musical, mas pela editora contratada para administrar suas obras, sobre as quais elas se sentem donas e não se justifica mais nem na realidade jurídica, como também no costume atual da realidade vivenciada pelos compositores, esse tipo de tratamento nem mesmo de entendimento dos tribunais dando benefício desproporcional às grandes multinacionais esmagando e dando insignificância aos compositores perpetuando esse descaso. 

Será que um dia o compositor será mais respeitado? Será que o Brasil um dia será reconhecido pela obediência às suas leis do direito autoral? Será que desde antes da criação do ECAD a história continuará a mesma? Compositores que têm afinidade com a arte e não com as letras rebuscadas do "juridiquês", no afã de conseguir um lugar ao sol, ainda seduzidos por com esse mesmo modus operandi das editoras? Onde sobrou a boa-fé? Afinal quem faz a música?

Maira Barros
Filha de Antonio Barros e Cecéu- cantores e compositores; graduanda em Direito; trabalha na área do Direito Autoral desde 2002, fundou a Abramus no DF (uma das 7 associações que compões o ECAD), e onde foi gestora do A&R de 2011 à 2016. Atualmente diretora-presidente da MCA3 Produção e Edições Musicais LTDA.-ME e administradora/fiscal de repertório em Direitos Autorai
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