'Devastador': moradores da Amazônia temem que seca histórica seja prenúncio de 'ponto de não retorno'

Em 2023, a floresta amazônica sofreu a pior seca já registrada. Muitas aldeias ficaram inacessíveis pelos rios, as queimadas se espalharam e os animais morreram. Cientistas temem que eventos como estes estejam ajudando a levar a maior floresta do mundo ao seu ponto de não retorno.

Observando as margens rachadas e escaldantes do rio ao nosso lado, Oliveira Tikuna começa a ter dúvidas sobre a viagem. Ele está tentando chegar à sua aldeia em uma canoa de metal, construída para navegar nos menores córregos da Amazônia.

Bom Jesus do Igapó Grande é uma comunidade de 40 famílias no meio da floresta, no Estado do Amazonas. Ela foi muito atingida pela pior seca já registrada na região.

Não havia água para tomar banho. Safras de banana, mandioca, castanhas e açaí estragaram porque os produtos não conseguiam chegar à cidade a tempo para o consumo.

O pai de Oliveira é o chefe da aldeia. Ele aconselhou a todos os idosos e pessoas doentes que se mudassem para mais perto da cidade, já que a aldeia fica longe do hospital e os riscos são grandes.

Oliveira quis nos mostrar o que está acontecendo. Ele nos alertou que seria uma longa viagem.

Mas, quando saímos do vasto rio Solimões e entramos no riacho que leva à sua aldeia, até Oliveira se surpreende. Em alguns trechos, o riacho está reduzido a um córrego com não mais de 1 metro de largura. Em pouco tempo, a canoa atola no leito do rio. É hora de sair e puxar.

"Tenho 49 anos de idade e nunca vi nada igual antes", diz Oliveira. "Nunca nem ouvi falar de uma seca tão forte quanto esta."

"Se secar mais do que isso, minha família vai ficar isolada por lá", receia ele.

"Para chegar ou sair, eles precisam atravessar a pé o leito de um lago no outro lado da aldeia. Mas é perigoso – existem cobras e jacarés por ali."

A estação chuvosa da Amazônia deveria ter começado em outubro. Mas, no final de novembro, ainda estava seco e quente.

É o efeito do padrão climático cíclico El Niño, amplificado pelas mudanças climáticas.

O El Niño causa o aquecimento das águas do Oceano Pacífico, que impulsiona ar quente sobre as Américas. Neste ano, a água do Atlântico Norte também ficou mais quente do que o normal e a Amazônia ficou envolvida pelo ar quente e seco.

"Quando vi minha primeira seca, eu pensei: Uau, isso é horrível. Como isso pode acontecer com a floresta?", conta a bióloga especializada em ecologia vegetal Flávia Costa, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Ela mora e trabalha na floresta há 26 anos.

"E depois, ano após ano, os recordes vêm sendo quebrados. Cada seca é mais forte que a anterior."

Costa afirma que é cedo demais para avaliar o tamanho dos danos da seca deste ano. Mas seus colegas descobriram muitas plantas "exibindo sinais de estarem mortas".

As últimas estações secas dão sinais do dano que pode ser causado. Algumas estimativas dão conta que a "seca Godzilla" de 2015 matou 2,5 bilhões de árvores e plantas em apenas uma pequena parte da floresta. E ela não foi tão forte quanto a seca atual.

"Em média, a Amazônia parou de funcionar como sifão de carbono", afirma Costa. "E esperamos basicamente o mesmo agora, o que é triste."

Além de abrigar uma variedade extraordinária de biodiversidade, a Amazônia armazena cerca de 150 bilhões de toneladas de carbono, segundo várias estimativas.

Muitos cientistas temem que a floresta esteja se dirigindo para um momento crítico, no qual ela seca e desaparece, transformando-se em uma savana.

Tal como está, a Amazônia cria um sistema meteorológico próprio. Na vasta floresta, a água evapora das árvores para formar nuvens de chuva que viajam sobre a copa das árvores, reciclando a umidade por cinco ou seis vezes. Isso mantém a floresta fresca e hidratada, fornecendo a água que ela precisa para manter a vida.

Mas, se trechos de floresta morrerem, esse mecanismo pode ser interrompido. E, quando esse momento crítico for atingido, não haverá retorno.

O climatologista Carlos Nobre foi o primeiro a apresentar esta teoria em 2018. Ele é um dos autores de um estudo que afirma que, se a Amazônia for desmatada em 25% e a temperatura global atingir 2 a 2,5 °C acima dos níveis pré-industriais, a floresta irá atingir o ponto de não retorno.

"Estou ainda mais preocupado agora do que estava em 2018", afirma Nobre. "Acabei de voltar da COP28 e não estou otimista quanto à redução dos gases do efeito estufa pelos objetivos do acordo. Se ultrapassarmos 2,5 °C, os riscos para a Amazônia serão terríveis."

Mas ele vê alguma esperança no fato de que o desmatamento caiu em todos os países que compõem a Amazônia em 2023 — e que todos estão comprometidos em reduzir o desmatamento a zero até 2030. Ele acredita que o Brasil pode atingir este objetivo ainda antes.

Mas nem todos os cientistas concordam que a floresta será totalmente transformada. A pesquisa de Flávia Costa indica que partes da floresta irão sobreviver, particularmente aquelas com fácil acesso às águas subterrâneas, como os vales.

Mas existem sinais preocupantes de degradação em toda parte. Em Coari, no interior do Amazonas, o ar estava espesso com fumaça quando visitamos a aldeia de Oliveira.

Quando a floresta está seca, pequenas queimadas para limpar terra para o plantio saem do controle. Normalmente, queima-se partes já degradadas ou desmatadas. Mas, este ano, houve mais queimadas em áreas de floresta primária ou intocada.

E existem outros sinais de que o ecossistema enfrenta dificuldades. Em dois lagos, centenas de botos foram encontrados mortos.

"Foi simplesmente devastador", afirma Miriam Marmontel, do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. "Nós encontramos animais vivos, belos espécimes e, cinco dias depois, tínhamos 70 carcaças."

Em questão de semanas, eles encontraram 276 botos mortos em dois lagos. Marmontel acredita que a temperatura da água esteja matando os animais.

A temperatura chegou a 40,9 °C em alguns lugares — três graus acima da temperatura corporal normal dos botos e dos seres humanos.

"Imagine o animal que fica com o corpo inteiro imerso naquela água por tantas horas", explica Marmontel. "O que você faz? É o lugar onde você vive e, de repente, você está no meio dessa sopa e não consegue sair."

Nos seus 30 anos vivendo na Amazônia, Miriam Marmontel nunca imaginou que veria a região tão seca. Ela está impressionada com a rapidez das mudanças climáticas.

"Foi como um tapa na cara. Porque é a primeira vez que vejo e sinto o que está acontecendo na Amazônia", ela conta.

"Sempre dizemos que esses animais são sentinelas porque eles sentem primeiro o que vai acontecer conosco. Está acontecendo com eles, vai acontecer conosco."

Também para Oliveira Tikuna, este ano foi um sinal de alerta.

"Sabemos que temos muita culpa por isso, que não prestamos atenção, que não defendemos nossa mãe Terra. Ela está clamando por ajuda", afirma ele.

"É hora de defendê-la."

Correio Braziliense e BBC Foto Agencia Brasil