Povos e comunidades tradicionais enfrentam empresas e governos ao exigirem ser consultadas antes da instalação de grandes projetos

O assoreamento e a poluição da água do Rio Bebedouro, em Piatã, na Bahia, é consequência da mineração. “

O único rio que não secava na seca, agora desce pouca água e devido os rejeitos jogados na cabeceira, os moradores não têm coragem de usar a água”, denuncia Vanusia Santos, moradora da comunidade quilombola de Bocaina, região do Bebedouro.

Este fato prejudicou a vida de em média 250 pessoas, impactando também a agricultura familiar, que é a base da renda das famílias, as quais hoje “não têm água nem para beber”, completa Vanusia.

Como se não bastasse, a Agência Nacional de Mineração aprovou recentemente relatório de pesquisa da empresa Brazil Iron e autorizou o direito de requerer lavra em mais dois locais da Bocaina, uma área onde existem muitas nascentes de rios responsáveis por abastecer outros rios maiores. Ou seja, a comunidade, que desde 2013 é certificada como quilombola e foi berço dos povos Tapuias, hoje corre o risco de desaparecer em nome da extração do minério de ferro.

Em São João do Tigre, na Paraíba, a mais de 1.200 km de Piatã, outra comunidade quilombola enfrenta o impacto da produção de energia eólica. Cacimba Nova é uma das nove comunidades impactadas diretamente na região. Para Josiel Alves, da Coordenação Estadual das Comunidades Negras e Quilombolas da Paraíba – Cecneq-PB, ao invés da chegada dos empreendimentos promoverem melhores condições de vida para as famílias, a realidade é de aumento das vulnerabilidades. A dificuldade de acesso à água é um exemplo de violação de direitos causados pelos grandes projetos também presente no cariri paraibano.

Voltando para a Bahia, agora no norte do estado, região de Caatinga, é possível identificar também comunidades tradicionais resistindo às investidas das mineradoras e parques de geração de energia renováveis. Exemplos disso são as comunidades de Bom Jardim, no município de Canudos, e a comunidade de Caboclo, em Juazeiro, ambas certificadas como Comunidades Tradicionais Fundo de Pasto.

O que tem em comum entre todas estas comunidades, além do modo de vida tradicional, é o processo atual de organização para enfrentar o racismo ambiental autorizado pelo Estado brasileiro. As lideranças comunitárias denunciam a conivência dos governos dos estados e dos municípios e a negligência dos órgãos ambientais que deveriam fiscalizar, visando minimizar qualquer tipo de impacto ambiental.

A propaganda governamental gira em torno da economia do país e destas regiões a partir dos royalties e da geração de emprego, ainda que em sua maioria temporários e nem sempre absorvendo mão de obra local. Josiel Alves, no entanto, destaca que desde a colonização prevalece a violência contra os povos em nome “de uma economia que só favorecia uma pequena classe”. Para ele, “o Brasil mais uma vez entra na mira de um desenvolvimento que não está direcionado para população”, reforça, denunciando que aos povos e comunidades é negado inclusive o direito de participar da discussão.

Em nota, o Governo federal, por meio do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBio, reconhece que os grandes empreendimentos provocam impactos, tais como a “perda de indivíduos da flora e fragmentação de habitat (causado pela supressão de vegetação), afugentamento de indivíduos da fauna e atropelamento destes (em decorrência da implantação da atividade e, posteriormente, com as ações de manutenção na fase de operação). Para os empreendimentos eólicos, em especial, ainda há a questão da colisão com avifauna e a quiropterofauna, bem como os impactos inerentes ao conforto acústico”.

O órgão cita que no caso do “licenciamento ambiental de empreendimentos de significativo impacto ambiental, com fundamento em EIA/Rima, existe a previsão da realização de audiências públicas (por força da Resolução Conama nº 09/87), contudo o ICMBio não possui participação na organização dessas audiências públicas”, que devem ser realizadas pelos órgãos ambientais licenciadores.

Em boa parte dos casos, no entanto, não acontecem nem as audiências públicas, nem as consultas prévias, livres e informadas ou esclarecidas, conforme estabelece o Conama e a OIT, respectivamente.

Desrespeito à Convenção 169 da OIT-O artigo 6º, item I da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), agência multilateral da Organização das Nações Unidas, estabelece o direito à consulta e consentimento, ação que deve ser encaminhada pelo órgão ambiental licenciador. Conforme o artigo, os governos deverão “consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente”.

No Brasil este pacto foi promulgado através do Decreto 5.051/2004 e significa que a consulta “deve ser de forma livre, sem coação, sem qualquer tipo de ameaça; deve ser prévia, ou seja, anterior à instituição dessa medida [início da exploração] e também deve ser informada. As comunidades necessitam de informação completa”, explica Natiele Santos, advogada, coordenadora da Associação de Advogados/as de Trabalhadores/as Rurais – AATR, que tem atuação na Bahia.

Entretanto, isso não aconteceu em nenhuma destas comunidades citadas. Em Bom Jardim, Canudos (BA), após pressão popular, a empresa Voltalia convocou publicamente no mês de outubro uma “Consulta Pública Livre, Prévia e Informada sobre o Complexo Eólico Canudos”, ação que foi amplamente denunciada pela comunidade, uma vez que não cabe à empresa realizar a consulta, por ser a principal interessada no empreendimento e assim desrespeitar o que estabelece a OIT.

Na Paraíba, a convenção 169 também não vem sendo considerada, há inclusive parque eólico instalado dentro dos limites do território quilombola sem que esta pudesse opinar a respeito. Josiel explica que a Cecneq vem dialogando com as comunidades para que estas demandem a justiça, ao tempo em que a entidade aciona o Ministério Público Federal, exigindo que a legislação existente seja aplicada.

Em Juazeiro, a região do Vale do Salitre conta com um parque de energia solar em processo de instalação. Apesar da terra ter sido comprada de fazendeiros, a primeira etapa ocupa área que corresponde a “aproximadamente 1.649 campos de futebol”, conforme informação disponível no site da Eneva, empresa hoje responsável pelo empreendimento. Ou seja, toda a população local, a flora e a fauna serão afetados com os impactos de uma imensa área desmatada. “O Complexo Solar Futura é um dos maiores parques solares das Américas. (...) São 22 usinas fotovoltaicas e mais de 1,4 milhão de painéis solares distribuídos em 1.649 hectares”, cita o site.

Segundo a vice-presidenta da União das Associações do Vale do Salitre – Uavs, Mineia Clara, não houve nem consulta prévia e nem audiência pública, algo que seria necessário, uma vez que os impactos afetam diversas comunidades no entorno. Ela informa ainda que a empresa chegou na comunidade no período de pandemia, até mesmo as reuniões da Comissão de Acompanhamento ao Empreendimento (CAE) até o momento acontecem apenas em formato virtual, o que dificulta a participação das pessoas das comunidades.

A Eneva informou por meio de nota que a audiência pública foi dispensada pelo órgão licenciador, que no caso da Bahia é o Instituto de Meio Ambiente e Recursos Hídricos – Inema. “Por ser considerada uma atividade de geração solar, o licenciamento foi realizado por meio de Estudo Ambiental Simplificado (EAS) ou RAS (Relatório Ambiental Simplificado)”, disse a Eneva.

A companhia, que além da Bahia atua na geração de energia nos estados do Maranhão, Ceará, Sergipe e Roraima, informou também que “na fase anterior à implantação, instituições públicas e privadas de Juazeiro, assim como os povoados do entorno do empreendimento, foram visitadas por profissional de serviço social”. Disse ainda que a partir de 2024 as reuniões de acompanhamento serão presenciais, atendendo a pedido da comissão.

A promotora de justiça da Bahia, Luciana Khoury, enfatiza que é preciso ter os órgãos licenciadores ouvindo os povos e comunidades quando se trata de projetos e ações que possam impactar estes sujeitos. Para ela, a necessidade da exigência da consulta a povos e comunidades tradicionais é muito clara, “mas infelizmente isso não vem sendo uma prática, inclusive temos alertado a municípios que fazem licenciamentos ambientais de empreendimentos que façam e observem essa necessidade”.

Luciana afirma ainda que é necessário que a justiça oriente as comunidades e povos “que eles têm esse direito [à consulta], pra que estejam se organizando, se preparando para fazer o seu protocolo de como querem ser consultados”. Na Bahia, ela cita que está sendo discutida uma Instrução Normativa que vai reger todos esses atos, porque há uma realidade de descumprimento dessa norma e “com isso a gente entende que temos aí violação de direitos”, confirma a promotora.

Protocolo de consulta-Em 2019, a comunidade de Caboclo, em Juazeiro (BA), foi surpreendida com uma máquina desmatando o Serrote Grande, situado na área coletiva. Ao confirmar que havia licença do município para isso, a associação local conseguiu recorrer à justiça e cancelar a mesma. Em julho deste ano a nova surpresa foi uma notificação de que a mineradora Pedras do Brasil está reivindicando na justiça o direito de explorar a área. “A gente tá esperando o julgamento, mas o que a comunidade quer mesmo é a consulta, que é de direito. A comunidade hoje defende isso, já fez o protocolo da consulta”, informa Maria Ivonete Laurindo, moradora da comunidade.

Segundo o Observatório de Protocolos Comunitários, os protocolos de consulta são documentos autônomos, elaborados pelos povos e comunidades tradicionais contendo regras para o procedimento da consulta prévia, livre e informada. No documento se destaca as especificidades do modo de vida e organização social e comunitária de cada povo ou comunidade, exigindo que tudo isso seja respeitado no momento da realização da consulta.

A AATR, que presta assessoria jurídica popular a algumas comunidades impactadas por grandes empreendimentos, vem acompanhando processos de construção de protocolo de consulta, como foi o caso de Caboclo e também de comunidades quilombolas em Bom Jesus da Lapa (BA). A advogada Natiele Santos cita que o trabalho na via judicial consiste em fundamentar o direito das comunidades serem consultadas previamente, exigindo também estudos de impactos, planos básicos ambientais, etc. Em Bom Jesus da Lapa, ela cita que já houve casos em que a Fundação Cultural Palmares multou empresas por não cumprirem a legislação e buscou se instalar em território quilombola sem consulta à população.

Em Piatã, o Movimento S.O.S Bocaina e Mocó virou referência internacional. Se valendo da convenção 169 da OIT, a comunidade, com assessoria jurídica e apoio de instituições, recorreu à corte da Inglaterra para enfrentar a mineradora Brazil Iron. Vanusia Santos conta que foram feitas “várias denúncias nos órgãos públicos competentes aqui no Brasil, mas a gente percebeu que não estava tendo muita resposta, o Inema, por exemplo, estava fazendo vista grossa”, denuncia a moradora de Bocaina.

A partir disso, foram em busca de entender como funcionam as leis fora do Brasil para formalizar a denúncia no país de origem da empresa. Ao saber disso, houve tentativas de coerção por parte de funcionários da Brazil Iron, mas a comunidade manteve a denúncia e foi determinado pela justiça da Inglaterra que os/as funcionários/as não poderiam se aproximar de moradores/as das comunidades quilombolas. Ao desrespeitar esta determinação, a empresa foi multada pela corte inglesa em uma segunda audiência realizada no último dia 20.

Povos e comunidades não estão só-Muitas comunidades que hoje enfrentam essa situação contam com entidades de apoio como OSC’s, pastorais, redes, fóruns, etc. As universidades e grupos de estudos e pesquisas também costumam dar sua contribuição. Na região da Chapada Diamantina, na Bahia, a Universidade do Estado da Bahia – Uneb, é uma das apoiadoras do Movimento S.O.S Bocaina e Mocó. “O que a gente tem observado enquanto universidade é que uma série de processos e projetos de desenvolvimento que colocam o Semiárido na modernidade estão chegando nestas comunidades mas em tom de invasão”, alerta Gislene Moreira, professora da Uneb que vem acompanhando e colaborando com a luta das comunidades, especialmente na Chapada Diamantina.

Gislene destaca que há um processo de invisibilização ou mesmo criminalização das comunidades. Ela lembra que muitas, inclusive, nunca foram reconhecidas pelo Estado, resistiram na ausência do mesmo, mas agora são enxergadas para fins de exploração dos seus bens naturais. “Nós temos hoje a necessidade de construir com essas comunidades um processo de autonomia, de identidade e de valorização”, visando inclusive a preparação para a consulta prévia, para que estas não se rendam aos discursos mentirosos das empresas e dos governos, pontua Gislene.

Ao defender que os povos e comunidades desenvolvam seus protocolos, a promotora Luciana Khoury reforça que a escuta pode “evitar sim uma série de impactos que decorrem dessas ações nos territórios, pois nos territórios existem os povos e comunidades que são invisibilizados ao longo de anos e sem a garantia dos seus direitos”, reafirma.

Articulação Semiárido-Bahia Foto Rodrigo Wanderley