Prevenção à violência contra a mulher precisa ser abordada na escola

Combater o ciclo da violência contra a mulher vai além da penalização criminal. Trabalhar no âmbito da educação desde a infância é um dos fatores cruciais no enfrentamento a esse tipo de crime. 

Tema central do primeiro painel do seminário "Combate ao feminicídio: uma responsabilidade de todos", promovido pelo Correio, as convidadas Rejane Jungbluth Suxberger, juíza do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios ((TJDFT) e especialista em gênero; Lia Zanotta Machado, antropóloga, professora emérita da Universidade de Brasília (UnB); Valéria Brito, psicóloga da Coordenação de Atenção à Saúde do Servidor do Ministério da Saúde; e Rose Rainha, superintendente do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae-DF) falaram sobre o caminho da mudança.

Mais do que punir, é preciso incentivar ações educacionais ministradas tanto em casa quanto nas escolas ou instituições de ensino. Atitudes como essas, na avaliação da juíza Rejane Jungbluth, são preventivas e podem auxiliar na redução dos índices de crimes contra mulheres. "O enfrentamento ao feminicídio só é possível quando nos deparamos com políticas públicas. É preciso que haja um compromisso do Judiciário, Executivo e Legislativo para garantir que essa vítima possa ser acompanhada. O DF tem sistemas de acompanhamento de mulheres, mas é necessário que haja efetividade. Como está acontecendo? Esses homens estão sendo atendidos? Infelizmente, o país é assolado pelo machismo. Esse poder do masculino sobre o feminino reitera uma violência", frisou.

Durante o debate, a magistrada falou sobre a invisibilidade do crime contra mulheres e a falta de participação da sociedade no combate a esse ciclo de violência. "É necessário sair desse debate. A sociedade tem um preconceito ainda, como se a vítima de violência tivesse um estereótipo. O que foi possível verificar nas salas de audiência de violência doméstica é que a violência não tem cara, cor e nem classe", afirmou.

RELAÇÕES AFETIVAS: Lia Zanotta Machado destacou que a violência doméstica e o feminicídio se inserem em contextos afetivos, com companheiros e outras pessoas com graus de parentesco ou proximidade envolvidos. Segundo a especialista, são justamente essas relações afetivas que impedem que algumas mulheres denunciem as violências pelas quais estão passando. "Elas também têm medo. O perigo não está lá fora, mas dentro de casa. Ela tem vergonha e sente medo de ser coagida pelos familiares do companheiro", disse. "Precisamos de uma integração entre o Executivo e o Judiciário no combate a esse tipo de violência. Precisamos, também, de atendimentos aos homens. É fundamental que haja grupos de reflexão para eles", observou.

"Agora, a demanda mais geral é que as escolas precisam falar disso. Os órfãos do feminicídio são muitos", ressaltou, ainda ao abordar o alinhamento entre Executivo e Judiciário. Ela mostrou números que revelam os danos às famílias causados pelo feminicídio no DF, entre 2015, quando o crime foi tipificado, e 2022: foram 153 vítimas, 150 autores, 181 menores órfãos e 108 maiores de idade que perderam a mãe para a violência. Lia informou que esse tipo de violência é mais comum nas parcelas vulneráveis da sociedade, como as mulheres negras, pobres e de baixa escolaridade.

A cultura machista como forma de controlar as mulheres também foi frisada pela antropóloga, assim como a cultura do estupro. "Quando fiz um estudo sobre casos de estupro, vi que boa parte dessas violências vêm de familiares. De desconhecidos tem um número maior de prisões, e esse homens desconhecidos não buscam por prazer sexual, mas por uma relação de poder sobre a mulher. Também é o caso de homens que não se importam mais com o grau de proximidade com as vítimas. Feminicídio já está sendo muito discutido e é algo muito sério. Já sobre o estupro, fala-se menos e também é muito sério", alertou. "É difícil denunciar o estupro porque também tem a questão da vergonha e a culpa que são impostas à mulher. Tanto no estupro quanto na agressão, a mulher é culpabilizada e o homem fica na posição de que fez algo levado pela postura da mulher", lamentou.

Sobre levar o combate à violência de gênero para as escolas, Lia ressaltou que as crianças precisam aprender que os conflitos são naturais, mas precisam ser resolvidos com diálogo, calma e autocontrole, não com agressividade. "É mostrar, também, que, independentemente do gênero, sexualidade e raça, somos todos iguais. O respeito à igualdade da diversidade é muito importante. Geralmente, aprende-se isso com a família, mas a família, muitas vezes, é quem ensina a violência para a criança. Então a escola entra com esse papel", apontou.

A psicóloga Valéria Brito trouxe, em sua fala, o importante alerta sobre a violência doméstica afetar até três gerações de uma família. Além disso, ressaltou a importância da saúde primária para o bem-estar familiar. "Nós percebemos a ligação entre a exposição à violência, principalmente nos primeiros anos da infância, e a ocorrência de transtornos comportamentais na adolescência e na vida adulta", afirmou.

Segundo a profissional, a violência impacta negativamente em crianças e jovens e mantém um ciclo, podendo persistir por décadas. "A literatura é muito robusta em relação ao fato de que viver num ambiente de violência naturaliza aquela violência", comentou. A especialista explicou também sobre as sequelas de castigos físicos na infância. "Considera-se que relação íntima com o outro tem o direito de invadir a integridade física e de que isso é amor", ressaltou, completando que a escola é fundamental para apresentar à criança outros modos de convivência.

Valéria abordou a importância da saúde primária estar comprometida com o bem-estar das famílias e a existência de um dispositivo de notificação de violência que respeita o sigilo. "Essa ferramenta dispara no sistema de saúde uma rede de atenção a essa família que deve, necessariamente, incluir a atenção psicológica", explicou.

No entanto, a psicóloga avaliou que há uma falha no atendimento à saúde primária no DF. "A nossa cidade é uma vergonha no ponto de vista da atenção psicossocial", enfatizou. Valéria, que tem mestrado e doutorado sobre o tema da violência contra a mulher, a partir do impacto da saúde mental, avaliou que não há acolhimento de pessoas com quadros graves que impedem a convivência familiar e comunitária. "A gente precisa que a rede funcione e que haja profissionais, psicólogos por exemplo, que estejam disponíveis para as pessoas na atenção primária", alertou, concluindo que ter uma cidade com melhor qualidade de vida reduz a violência doméstica.

Ascom