Dificuldades no controle da pandemia aumentaram transmissão de bactéria resistente em ambiente hospitalar

O elevado número de casos graves nos picos da pandemia de covid-19 provocou um colapso no sistema de saúde. Entre as principais dificuldades enfrentadas estavam a superlotação das Unidades de Terapia Intensiva (UTIs), alta carga de trabalho para os profissionais de saúde, falta de profissionais experientes no atendimento em UTI, aumento do uso de antimicrobianos e ausência de recursos (medicamentos e insumos). Esse cenário, de acordo com estudo feito por pesquisadores da USP, contribuiu para o aumento do número de pacientes com doença causada por Klebsiella pneumoniae, bactéria extensivamente resistente ao uso dos antibióticos.

Essa conclusão foi obtida a partir da análise de amostras de sangue, secreção traqueal, urina e outros fluidos coletadas de 26 pacientes positivos para a bactéria e que estavam internados no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (HCFMRP) da USP entre setembro e novembro de 2020, que corresponde ao primeiro pico de casos da covid-19 no Brasil.

Os casos foram confirmados nas UTIs de covid-19, na UTI de pacientes sem covid-19 ou nas enfermarias clínicas e cirúrgicas. “Observamos um aumento expressivo dos casos de Klebsiella pneumoniae extensivamente resistente nas UTIs que foram dedicadas ao atendimento da covid-19. Ao analisar amostras de outros locais, como enfermarias, por exemplo, os casos diminuem”, conta o médico infectologista e chefe da Comissão de Controle de Infecção Hospitalar do HCFMRP e um dos coordenadores do estudo, Gilberto Gambero Gaspar.

A pesquisa analisou três vertentes importantes, segundo Gaspar, a questão epidemiológica a partir dos casos clínicos e da cadeia de transmissão, estudos microbiológicos e de suscetibilidade a drogas, e análises moleculares através do sequenciamento completo do genoma das bactérias; “tudo para tentar entender um pouco mais da transmissão”, explica o infectologista.

Os pesquisadores apontam que, possivelmente, são resultado da transmissão cruzada, contaminação entre pessoas, de superfície e entre objetos e pessoas, durante a pandemia. E, entre as possíveis causas, a alta sobrecarga dos pacientes com ventilação mecânica na UTI, necessidade de a equipe de saúde realizar manobras para evitar a baixa oxigenação no sangue (pronação, que significa deitar paciente de barriga para baixo), alta carga de trabalho dos profissionais da saúde e pacientes em estado extremamente crítico.

Outro destaque do estudo apontado pelos pesquisadores é o índice de mortalidade de 30,7% entre os infectados analisados no estudo, e o fato de 80% dos pacientes que morreram terem ao menos uma comorbidade. “Isso chamou muito a atenção, pois mostra a dificuldade de tratamento, ou seja, temos pouco arsenal terapêutico com eficácia considerada boa para esses casos, o que leva o paciente a um tratamento empírico, que é o uso inicial de antimicrobianos baseado em bactérias mais prováveis antes do diagnóstico microbiano ser finalizado”, afirma o médico.

Ainda de acordo com Gilberto, os resultados reforçam a importância das práticas de higienização das mãos, dos programas de limpeza do ambiente e do uso racional de antimicrobianos. “No cenário da pandemia, observamos o uso abusivo de antimicrobianos, muitas vezes pela dificuldade de diferenciação diagnóstica entre a covid-19 grave e um quadro de pneumonia bacteriana associada”, finaliza.

Para ampliar o entendimento da transmissão, os pesquisadores realizaram o sequenciamento do genoma completo da Klebsiella pneumoniae encontrada em 26 pacientes e o compararam com o perfil genômico da mesma bactéria que havia sido isolada dois anos antes, em 2018, em trabalho prévio feito também no HCFMRP por pesquisadores da FMRP e Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP.

“Havia uma predominância de um tipo particular da bactéria que está presente no hospital desde 2018. Observamos que esse tipo é responsável por 75% dos casos de pacientes que apresentaram infecção por essa bactéria no nosso estudo e que o tipo é portador de moléculas de DNA, chamadas plasmídeos, que permitem que o microrganismo se espalhe muito rapidamente”, explica María Eugenia Guazzaroni, professora da FFCLRP, microbiologista e coautora do estudo.

A investigação sobre os mecanismos de resistência da Klebsiella pneumoniae também envolveu testagem para identificar a quais antibióticos a bactéria apresentou resistência e quais eram os genes associados a este mecanismo. Entre os medicamentos em estudo estava a polimixina B e os carbapenêmicos, que integram o grupo dos fármacos mais potentes no tratamento de infecções bacterianas.

“É importante conhecer as bactérias como em uma guerra ou jogo no esporte, pois só quando conhecemos a fundo é possível criar estratégias para ganhar a batalha. Para isso, temos que conhecer como elas sobrevivem ao tratamento com antibióticos, mecanismos e genes que as fazem ser resistentes, como esses genes são transferidos de uma bactéria para outra e como elas podem ser comparadas em outras partes do mundo. Só assim conseguimos conhecer melhor e procurar alternativas de tratamento que sejam mais efetivas para o seu combate e superar esse grande problema de saúde pública”, afirma Leonardo Andrade, professor da FCFRP da USP, biomédico, microbiologista e coautor do estudo.

Os resultados da pesquisa, coordenada pelo professor Valdes Roberto Bollela, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, estão no artigo Nosocomial Outbreak of Extensively Drug-Resistant (Polymyxin B and Carbapenem) Klebsiella pneumoniae in a Collapsed University Hospital Due to COVID-19 Pandemic publicado na revista Antibiotics.              

Jornal da USP