Artigo: Abate de jumentos, do risco à biossegurança à questão judicial

Somente em 2021, mais de 64 mil jumentos foram abatidos oficialmente no Brasil. Todos com um destino certo: exportação. Da pele do animal é extraído o colágeno, que serve para a produção do ejiao, um produto da medicina tradicional chinesa. A carne é um subproduto e segue para o Vietnã.

Através de artigo, Patrícia Tatemoto-PhD pela Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP,  coordenadora de campanha nas Américas na The Donkey Sanctuary, alerta que jumentos são abatidos oficialmente no Brasil. Todos com um destino certo: exportação.

Confira:

Em 2019, participei de uma apreensão de 800 jumentos em um “cenário de guerra” — disse um dos servidores públicos do órgão de defesa agropecuária do estado da Bahia. Animais morrendo todos os dias, pois nem sequer alimentação era fornecida.

Pessoas em condição de trabalho análogo à escravidão. Doenças de notificação obrigatória, negligenciadas; rastreabilidade inexistente. Uma prática cruel e indefensável, sobretudo em um país com inegável vocação agrícola.

Somente em 2021, mais de 64 mil jumentos foram abatidos oficialmente no Brasil. Todos com um destino certo: exportação. Da pele do animal é extraído o colágeno, que serve para a produção do ejiao, um produto da medicina tradicional chinesa. A carne é um subproduto e segue para o Vietnã. A atividade é claramente extrativista: representa um risco real não só para a população do animal, mas para a saúde pública.

Livre de fiscalização, a captura, o transporte e o abate ocorrem sem controle, vistoria, prevenção de zoonoses ou plano de reposição de rebanho. Os animais são capturados ou furtados; transportados sem acesso à comida ou água. Boa parte morre no trajeto. Doenças como o mormo, que pode ser fatal em humanos, encontram nesse cenário um terreno fértil para se disseminar e sofrer mutações. Parece que não aprendemos o suficiente com a maior crise sanitária do século, pois a atividade é protopandêmica.

Muito embora o abate esteja proibido por uma liminar estabelecida pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região, os abates de jumentos continuam. Enquanto a decisão judicial é descumprida, os jumentos seguem sendo abatidos nos frigoríficos baianos, que concentram mais de 90% das exportações. Desde fevereiro, data da proibição, mais de 15 mil animais foram abatidos apenas na Bahia.

De 2015 para cá, estima-se que o volume de abates cresceu em 8.000%, muito acima da taxa de reprodução da espécie. Existem inúmeros dados oficiais quanto à queda da população destes animais no Brasil. Dados do IBGE mostraram uma redução de quase 1 milhão em 2011 para 376 mil animais em 2017. Apenas no último ano, estima-se que aproximadamente 90 mil jumentos morreram, considerando os números oficiais de animais abatidos somados às perdas de até 20% registradas em casos investigados.

Pode parecer exagero que um animal que esteve tão presente na nossa vida, que foi imortalizado em nossa cultura, arte e músicas e é um símbolo do Sertão brasileiro, esteja em risco de extinção no país. Mas é exatamente o que está acontecendo: o jumento nordestino vai desaparecer.

Há quem argumente que o abate é importante para o desenvolvimento econômico da região onde ele ocorre. Mas não há evidências que corroborem esse argumento falacioso, visto que é uma atividade recente e finita, com prazo para se encerrar devido à sua natureza extrativista. Além de insustentável, o risco à biossegurança e seu modus operandi precário envergonham um país de alto potencial agrícola. A falta de rastreabilidade e cuidado sanitário pode manchar a imagem do agronegócio brasileiro, causando prejuízos incalculáveis para a economia.

Nessa combinação de crueldade, ilegalidade e descaso, o Brasil perde a oportunidade de fazer a diferença e traçar um projeto de lei que proíba, de forma definitiva e com os devidos dispositivos legais, o abate de jumentos em todo o território nacional.

A velocidade com que os abates vêm acontecendo chamou a atenção de cientistas, advogados, biólogos, veterinários, ONGs, ativistas e outros especialistas. Entendemos que não há tempo a perder: é preciso ampla mobilização popular para que o Brasil tome a decisão correta e apoie o PL 5949. Para esse fim, estamos lançando em todo o território nacional uma campanha de conscientização e coleta de assinaturas em uma petição que demanda o banimento por completo da prática, com disposições claras e previstas em lei para os infratores.

Entendemos que é necessário encerrar essa prática por completo. Defendemos um futuro sustentável que inclua a sobrevivência desses animais. Além das leis, precisamos de fiscalização para evitar que os abates clandestinos continuem à revelia das decisões judiciais, da legislação e até mesmo de práticas básicas de cuidados sanitários, controle de zoonoses e tratamento humanitário aos animais.

Esperamos que os representantes do povo brasileiro entendam que é preciso aprovar o PL 5949 e garantir o direito inalienável à vida desses nobres animais, que ajudaram a construir nossa sociedade. Nessa luta, entendemos que lei e fiscalização são peças-chave para cessar uma atividade indefensável, que prejudica as pessoas, os animais, o agronegócio, a cultura e a nação.

Patrícia Tatemoto-PhD pela Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP, é coordenadora de campanha nas Américas na The Donkey Sanctuary

Correio Braziliense