Voto feminino aponta postura mais crítica das mulheres

Este é o ano em que o voto feminino no Brasil completa 90 anos, tendo sido oficialmente instituído no primeiro Código Eleitoral, de 1932. Uma conquista tardia e que ainda não se completou quando se pensa na vacilante e intermitente democracia do País.

Representando 53% do eleitorado nacional, uma diferença nominal de 8,5 milhões de pessoas, as mulheres ocupam cerca de apenas 15% dos cargos eletivos. Neste ano de 2022, conforme as pesquisas de intenção de votos desfilam pelos noticiários, as atenções voltam-se novamente para elas.

Isso porque, conforme a última pesquisa divulgada pelo Datafolha, em maio, é entre as mulheres o maior índice de rejeição a Jair Bolsonaro. Enquanto Lula registra 48% das intenções totais de voto no primeiro turno e o atual presidente marca 27%, quando se analisa apenas o eleitorado feminino esses números mudam para 49% e 23%, respectivamente. Em todas as faixas de renda indicadas na pesquisa, Bolsonaro está amplamente atrás do candidato petista entre as mulheres.

“Penso que as mulheres estão mais conscientes do machismo estrutural, para usar uma expressão da moda”, analisa a professora Nina Ranieri, da Faculdade de Direito da USP, quando questionada sobre os motivos dessa rejeição. “As mulheres não admitem expressões claras de governantes que venham diminuindo seu papel na sociedade como cidadãs ativas, que votam e pensam.”

Como sinal dessa tomada de consciência, Nina lembra a repercussão do caso de importunação sexual na Assembleia Legislativa de São Paulo, envolvendo o deputado Fernando Cury e deputada Isa Penna. “É uma reação muito clara desse tipo de postura, que vem mudando corações e mentes na sociedade brasileira, a despeito da tradição patriarcalista”, reflete a professora.

Para Nina, a rejeição a Bolsonaro, além de indicar o rechaço às manifestações do presidente relativas a um papel submisso da mulher na sociedade, seria ainda o sinal de uma transformação maior, de ordem cultural, que passa também pelos coletivos de mulheres e ativismo social. “Eu diria que há uma mudança de mentalidade e de visão, o que é extremamente importante para a afirmação das mulheres na cena política nacional”, afirma.

“Na história dos direitos humanos só se notam essas mudanças importantes na afirmação desses direitos quando há uma mudança na mentalidade e na cultura”, prossegue Nina. “Penso que a rejeição ao Bolsonaro por parte das mulheres é expressão dessa mudança, que já vem sendo forçada, do ponto de vista jurídico, por leis como a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio. As mulheres, de modo geral, em todas as classes e rendas, passam a tomar consciência da importância de seu papel na sociedade.”

Segundo o professor José Álvaro Moisés, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, a rejeição maior do atual presidente pelo eleitorado feminino pode passar também pela avaliação da atuação do governo em questões práticas, como a área da saúde.

“Minha hipótese é que as mulheres são mais sensíveis e mais críticas que os homens em questões como a saúde, por exemplo. Elas acompanham, na família, as situações em que as pessoas padecem sem ter a necessária assistência do governo”, comenta o professor. “Isso ficou evidente no caso da pandemia. Não é brincadeira o Brasil ter quase 700 mil mortes. Com mais vacinas e mais preocupação, pelo menos uma parte desse contingente tão alto poderia ter sido evitado.”

Moisés não encontra nas pesquisas nenhum indício de que esse comportamento do voto feminino esteja necessariamente atrelado a uma opção ideológica pela esquerda ou direita. O que parece central, aponta, é mesmo a percepção do impacto das políticas públicas sobre a vida. “Essa perspectiva de maior sensibilidade, de conectar os problemas com as políticas públicas omissas ou falhas, é que leva a uma crítica mais severa.”

A opinião do professor encontra ecos no trabalho de Natália Moreira, doutora pela FFLCH com uma tese na qual mostra que a diferença de apoio entre homens e mulheres a Bolsonaro se mantém constante ao longo de todo o seu governo.

“Desde as eleições de 2018, pesquisas de opinião pública já mostravam que a rejeição a Bolsonaro era maior entre as mulheres”, destaca a pesquisadora. “É válido lembrar que, durante a campanha eleitoral daquele ano, movimentos de mulheres lideraram uma campanha contra Bolsonaro com o emblema #elenão e, dias antes das eleições, protestos liderados por mulheres ocorreram em várias cidades brasileiras. Dados de uma pesquisa de intenção de voto divulgada pelo Datafolha em 2018 mostravam que a rejeição a Bolsonaro era de 50% entre as mulheres e 39% entre os homens.”

Para Natália, as políticas públicas adotadas pelo governo Bolsonaro podem ser uma das explicações para que essa diferença de apoio tenha se mantido constante ao longo dos anos.

“Evidência da minha pesquisa e também da literatura internacional mostra que, de um modo geral, as mulheres viam com maior gravidade a pandemia do que os homens. Elas também eram mais prováveis de reportar que utilizavam máscaras ao sair de casa. Em contrapartida, o presidente Bolsonaro em várias ocasiões menosprezou a gravidade da covid-19, além de as medidas adotadas pelo governo federal para conter o avanço da doença terem ficado aquém do esperado.”

A pesquisadora também aponta que as políticas econômicas e sociais adotadas ao longo da pandemia deixaram a desejar, o que reforça a desaprovação feminina ao governo.

“Embora o auxílio emergencial tenha sido central no primeiro ano da pandemia e evitado que muitas famílias passassem fome, o valor e o número de famílias que o recebiam caiu significativamente ao longo de 2021. Além disso, durante a pandemia, o desemprego entre as mulheres foi maior do que entre os homens, e são elas que estão demorando mais para retornar ao mercado de trabalho. Ao longo destes últimos anos, o aumento da inflação também tem pesado sobre o salário das famílias. Dado que, em muitas famílias, as mulheres são as responsáveis por fazer as compras para casa, é válido pensar que elas estão ainda mais cientes dos aumentos dos preços.”

As políticas públicas para a igualdade de gênero, que segundo Natália também deixaram a desejar durante a administração de Jair Bolsonaro, são outro fator para a rejeição maior entre as mulheres, um ponto que está em sintonia com a análise da professora Nina Ranieri. “Uma reportagem da Folha, por exemplo, mostrou que, em 2021, o governo Bolsonaro utilizou apenas uma pequena parcela dos recursos aprovados para as políticas para mulheres”, indica Natália. “Elas também não tiveram espaço na administração. Em março de 2022, dos 22 ministérios, apenas dois eram ocupados por mulheres.”

Sendo maioria no eleitorado, o voto feminino pode ser determinante para o resultado das eleições de 2022 e por isso desperta o interesse dos candidatos. Inclusive entre os que buscam se posicionar como uma terceira via, uma opção a Lula e Bolsonaro. É o caso da senadora Simone Tebet, que em declarações recentes vem tentando construir a ideia de que “mulher vota em mulher”.

Para o professor José Álvaro Moisés, a estratégia da senadora não é irrelevante e pode ter algum impacto, já que se aproveita da tendência recente da afirmação das mulheres na política, movimento que fez a representação feminina crescer de 10% para 15% em 2018. Um número ainda muito pequeno mas que, por isso mesmo, ganha força em falas como a de Tebet.

“Há um desequilíbrio entre a a representação e o tamanho da população feminina em instituições como o Parlamento e, em torno dessa questão, estamos tendo um grande debate para incorporar as mulheres e para se ter mais sensibilidade na escolha de candidatos”, constata o professor. “A senadora, claro, vai explorar essa perspectiva.”

Natália, por sua vez, lembra que a literatura internacional, apesar de destacar que as eleitoras sentem mais empatia por candidatas mulheres, mostra a existência de outros fatores importantes na hora de decidir o voto. Partido político, políticas públicas defendidas pelo candidato e o estado da economia são alguns deles.

A exclusão feminina na política brasileira é assunto histórico, conforme lembra Moisés. A primeira Constituição do Império, de 1824, não dava às mulheres direito ao voto e tampouco a se candidatar. As mudanças começariam mais de um século depois, em 1932, mas, ainda assim, a falta de espaço nos partidos políticos faria escassa a sua presença nos cargos eletivos. O cenário se alteraria pouco a pouco entre 1945 e 1964, sendo interrompido por conta do golpe militar e retomado somente a partir de 1988.

Hoje, aponta o professor, além do preconceito, um dos principais problemas para a maior presença feminina na política passa pela menor quantidade de recursos de financiamento de campanha destinados a mulheres. Há uma expectativa, aponta Moisés, de que as novas regras de financiamento eleitoral possam contribuir para alterar esses números.

Segundo Natália, a atual cota de gênero não tem tido sucesso em assegurar que haja maior representação das mulheres na Câmara dos Deputados.

“Em um estudo em colaboração com a professora Lorena Barberia, da FFLCH, investigamos as causas da baixa presença de mulheres no Congresso brasileiro. A literatura mostra que uma das iniciativas que têm tido mais sucesso em assegurar um número maior de mulheres nos altos cargos políticos é a reserva de assentos”, revela. “Quando implementada pela lei eleitoral, a reserva de assentos garante um mínimo de participação feminina, sem a incerteza que é tão característica dos cenários que envolvem a política de cotas legislativas. Além disso, vários estudos mostram que, quando no poder, mulheres adotam políticas públicas que promovem os interesses das mulheres.”

“A incorporação das mulheres, do modo como está ocorrendo, tem a ver com um processo de afirmação da cidadania no Brasil”, reflete Moisés. “A cidadania está desequilibrada, tendo em vista que o contingente demograficamente superior tem pouca participação. Quando isso começar a mudar estaremos fechando o processo de consolidação da cidadania dentro do quadro democrático”, finaliza.

Jornal da USP