" A meta para Bahia são dez mil cisternas de primeira água, aquela para beber e para consumo, e mais umas mil cisternas para produção", diz Cicero Felix

Premiado pela Organização das Nações Unidas (ONU), o programa de cisternas sofreu forte queda no repasse de recursos nos últimos quatro anos da gestão Bolsonaro. Para Cícero Félix, coordenador nacional da ASA (Articulação do Semiárido Brasileiro) na Bahia, o abandono do programa impactou nas condições de sobrevivência.

"O maior impacto foi a volta do Brasil ao mapa da fome. O não investimento em políticas de acesso à água, de garantia de direito humano de acesso à agua, impactou seriamente nas famílias", declarou.

Em entrevista ao Bahia Notícias, Félix, que também é técnico em agropecuária, informou a meta da Bahia para o programa neste ano, detalhou como ocorre a formação dos beneficiados e afirmou que a iniciativa precisa chegar na universalização da água, meta ainda fora do horizonte sertanejo. Clique aqui e lei a entrevista completa na Coluna Municípios.

Queria saber como está a realidade do sistema de cisternas no semiárido baiano?

O governo anterior praticamente desestruturou, desmontou o programa de cisternas no Brasil. O orçamento que tinha para o programa de cisterna neste ano era de R$ 2 milhões. Isso daria para construir em torno de 400 cisternas, de primeira água, no Brasil todo. Ali no governo de transição, com a eleição do presidente Lula, nós conseguimos, com a sociedade civil organizada através da ASA e de outras organizações, e hoje o orçamento do programa é de R$ 500 milhões para este ano. Saímos de R$ 2 milhões para R$ 500 milhões. O governo também lançou um edital para construção de 51 mil cisternas de primeira água e mais 5 mil para produção de alimentos.

Para a Bahia seriam quantas cisternas?  A meta para Bahia são dez mil cisternas de primeira água, aquela para beber e para consumo, e mais umas mil cisternas para produção de alimentos e manejo de animais. Com a ampliação do semiárido, se estima que na Bahia existam de mais de 150 mil famílias sem a primeira água. Já na segunda água, ainda são poucas famílias que tem esse recurso. Por isso, a maior demanda é para essa segunda água.

Qual foi o tamanho do impacto do governo federal anterior na falta de investimentos no programa de cisternas?

Olha, o maior impacto foi a volta do Brasil ao mapa da fome. O não investimento em políticas de acesso à água, de garantia de direito humano de acesso à agua, impactou seriamente nas famílias.

Dá para apontar quais municípios ou regiões baianas foram mais prejudicados com a falta de investimento da gestão Bolsonaro no programa de cisternas?

Não temos ainda esses dados, mas posso dizer com certeza que os municípios com os índices mais baixos de IDH [Índice de Desenvolvimento Humano] foram os mais afetados. Porque eles têm a economia dependente da agricultura familiar. Nestes municípios, os impactos foram profundos. Porque o governo anterior desmontou o Ministério do Desenvolvimento Agrário, que era o ministério que apoiava a agricultura familiar, desmontou praticamente o programa de cisternas, desmontou o sistema de segurança alimentar nutricional do país.

Nós tivemos um político com eleitorado na Bahia, João Roma (PL), como ministro do governo anterior que tratava desse assunto. Como era a relação com ele?

Na época, ele foi ministro da Cidadania. Nós tentamos contato com o ministério dele, mas infelizmente não foi possível. Nós não conseguimos dialogar com o ministério para executarmos o programa cisterna. Infelizmente.

E atualmente, como está a relação? Hoje, conseguimos dialogar. A relação é de construção, dialogando sobre as possibilidades. A meta é garantir o acesso universal para a água de consumo. No caso da água para produção de alimentos, ainda estamos distante da universalização. Sabemos que tem a disputa por orçamento público, isso é da construção e priorização das políticas. O MDS já lançou edital para contratação das organizações, e nós estamos nesse processo agora de finalização de editais para contratar as organizações que executar na ponta o programa cisterna.

Para recapitular o programa de cisternas é uma iniciativa da sociedade civil, não é mesmo?

O programa de cisternas foi na verdade nós da ASA que apresentamos o chamado programa para mobilização social para convivência com o semiárido. Dentro desse programa tinha a proposta de criar um milhão de cisternas. Nós fizemos isso pela primeira vez ainda no governo Fernando Henrique Cardoso (FHC). Era um programa piloto. Depois, no governo Lula virou política pública. No último governo, o programa quase que desapareceu.

A ASA é apontada como uma organização à esquerda, mas vocês já se manifestaram contra Dilma [Rousseff], não foi? A entidade se sente independente?

A ASA não tenho partido. É uma rede de organizações da sociedade que apresenta proposta de políticas públicas que interessam aos povos do semiárido. E nós dialogamos, nós construímos políticas públicas, e executamos. Apresentamos propostas no governo Fernando Henrique, no governo Lula, no governo Dilma, no governo Temer, mas a situação ficou difícil no governo Bolsonaro. Na época do primeiro governo Dilma, nós enfrentamos uma situação. Colocamos milhares de pessoas nas ruas para que questionar o governo por conta do desvirtuamento que estava sendo proposto no programa, que era a construção de cisternas de plástico. A pressão política é necessária para que os governos possam fazer as políticas que interessam as populações dessa região, e isso independente de cores partidárias.

Qual o problema das cisternas de plásticos? O problema são os impactos dessa água armazenada durante muito tempo nesse solzão do semiárido. Imagine o plástico esquentando durante o dia e esfriando durante a noite, ampliando e encolhendo. A gente não sabe o que se libera de toxina. Além do mais, o programa cisterna não é apenas a construção de um tanque, de um reservatório. Envolve toda a formação social para convivência com o semiárido. A questão da gestão hídrica. De a família poder conhecer como é que funciona a questão das chuvas. Fazer a boa gestão da água. Tem ainda a questão da economia local, com contratação de pedreiros, compra de material no comércio, ou seja, fortalece também a economia local. 

Como é a formação dessas pessoas que recebem cisternas? A cisterna chega por último na família. Para a família receber a cisterna, ela precisa primeiro se envolver no processo de formação e mobilização social pra convivência com o semiárido. Aprender como ela pode manejar e cuidar dessa cisterna, tratar a água. Muitas vezes se criticava que as cisternas não tinham água de boa qualidade. Mas antes de chegar na boca das pessoas, ela precisa passar por um filtro. Então, a água sai da cisterna e é filtrada para se ter um bom uso dela. 

Há previsão de novas estiagens no semiárido. Como o programa de cisternas pode ser alternativa para o enfrentamento desse problema?

Nós já estamos em um período de emergência climática, né [sic]? Então, a tendência é que cada vez mais a gente vivencie eventos extremos. Muita seca, muita enchente. No semiárido, a tendência é que a gente tenha chuvas mais irregulares no tempo e no espaço. A nossa proposta de convivência com o semiárido dialoga com todas essas esses desafios. Nossa grande estratégia é a do cuidado e da estocagem. As famílias precisam estocar água no período chuvoso para ter no período seco. As famílias precisam estocar alimentos pra si e para os animais no período chuvoso para usar no período de seca. Precisam guardar, precisam preservar, cuidar das sementes, das plantas, dos animais para não perder o seu patrimônio genético. A estratégia é a partir da realidade das famílias, das comunidades, dos biomas que cobrem essa região, caatinga e cerrado, trabalhar o cuidado desses biomas. E para isso, precisamos de políticas públicas para investir nessa perspectiva. 

As mulheres têm papel importante na gestão das cisternas? A tecnologia de segunda água, aquela para produção de alimentos, acompanha junto o chamado Quintal Produtivo. E geralmente a água para produção é gerenciada e cuidada pelas mulheres.

O programa de cisternas precisa de aprimoramento? Bom, o programa de cisternas é premiado internacionalmente. Já recebeu prêmios da Organização das Nações Unidas (ONU), recebeu prêmio de políticas com resultados comprovados contra a desertificação, recebeu prêmio como políticas de futuro para segurança alimentar das famílias. Então, assim, é um programa que dá certo, que funciona, que tem gerado grandes resultados para as populações que já têm cisterna em casa. Nós não vamos ficar reinventando a roda, nós temos é que garantir que as famílias tenham acesso a essas tecnologias. 

Bahia Notícias Foto: Reprodução / ASA Bahia