58 mil brasileiros foram resgatados da escravidão contemporânea entre 1995 e 2022

No aniversário de 134 anos da Lei Áurea, pela abolição da escravatura, o Brasil enfrenta um choque de realidade: 2022 pode ser o ano com o maior número de pessoas em situação de trabalho análogo à escravidão no país desde 2013.

Segundo o Radar SIT, Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil, 500 trabalhadores foram resgatados nessa condição degradante até o momento.

O número deste ano foi impactado pelo resgate de 273 trabalhadores em uma única ação realizada no mês de janeiro em uma usina de cana-de-açúcar de Minas Gerais. O estado lidera o ranking deste ano. Segundo painel de informações e estatísticas SIT, Goiás está em segundo lugar, com 29 trabalhadores em condição de escravidão, seguido de Mato Grosso do Sul, com 22 resgatados. Rio Grande do Sul e Bahia têm 18 e 17 pessoas libertadas, respectivamente. Historicamente, o estado com a maior quantidade de resgatados é o Pará, com 13.775. Em 2019, antes da pandemia atingir o país, Brasília ocupou a 6ª posição: 69 pessoas.

“O trabalho análogo ao escravo acontece quando o empregador explora a condição de vulnerabilidade do empregado, principalmente socioeconômica. É tirar das pessoas os seus direitos mais básicos”, explica a procuradora do Trabalho Lys Sobral Cardoso, coordenadora nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Conaete) do MPT.

Atualmente, mais da metade da população brasileira vive, em algum grau, situação de insegurança alimentar, e 9% sofre insegurança alimentar gravíssima, segundo levantamento do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19. Esse cenário facilita a atuação de aliciadores. Ainda segundo os estudos, 80% das vítimas de escravidão são negras, 47% nordestinas e 6% analfabetos, como mostra a Inspeção do Trabalho.

Outro fator que contribui para o trabalho escravo contemporâneo é a vulnerabilidade documental, em particular com imigrantes. “Quando a gente vê que está tendo uma crise migratória em algum lugar e que o Brasil está recolhendo essas pessoas, a gente já fica de olho, porque é bastante comum”, revela a coordenadora.

Apesar da tendência de alta neste ano, os números podem não ser precisos. Isso porque falta fiscalização. Segundo Lys Cardoso, a equipe atua com 40% do contingente, o que dificulta a cobertura do território. “Temos que reforçar o combate, estruturar melhor as equipes. Quando digo combate, é no sentido da punição, até porque existe uma sensação de impunidade. Também temos que garantir o acesso aos direitos básicos dos trabalhadores: educação, trabalho, terra, moradia, saúde, alimentação… isso tudo é direito fundamental, está na Constituição”, ressalta a procuradora do Trabalho.

A maior parte das vítimas de escravidão contemporânea são forçadas a atuar em áreas rurais, onde o acesso dos agentes é mais custoso. A parcela corresponde a cerca de 80% do total de casos, conforme dados da Conaete. Na opinião de Cardoso, esse fenômeno está relacionado à falta de uma reforma agrária, que permite uma grande concentração de terras na mão de poucos.

O professor na Escola de Filosofia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), Rodrigo Dantas, alega que os números do trabalho escravo são “talvez o símbolo mais eloquente do enorme retrocesso econômico, social, político, cultural, humano e civilizatório que tem sofrido o nosso país nesses últimos anos”.

Dantas critica particularmente a reforma trabalhista, aprovada recentemente. “A situação de fome, de desemprego, piorou muito, especialmente depois de 2016. A Reforma Trabalhista praticamente acabou com os direitos trabalhistas, praticamente acaba com a aposentadoria. Então as pessoas são lançadas numa situação em que, para sair da fome, se submetem a uma precariedade generalizada, salários decrescentes”, observa o professor.

Marcela Soares, professora de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF), acredita que, para entender o trabalho análogo ao escravo no Brasil, é necessário considerar a formação social e econômica do país. “É preciso pensar nesses componentes históricos e estruturais que compõem as especificidades na realidade brasileira, na constituição do seu mercado de trabalho, que é racializado, regionalizado e vai ter um heterogêneo acesso ao mercado de trabalho”, argumenta.

“O trabalho escravo acompanha essa diversidade de entrada no processo de permanência e reinvenção do que a gente pode chamar de formas transitórias de exploração de forma de trabalho no pós-abolição. Essas formas de escravização são refuncionalizadas porque cumprem o papel de compensar as transferências de valor como intercâmbio desigual entre os países de economias hegemônicas e os países periféricos como o nosso”, observa.

Correio Braziliense Foto Ilustrativa Agencia Brasil