Com rimas e sonhos, poesia ainda muda cotidiano e define vidas em São José do Egito

15 de Jan / 2018 às 18h00 | Variadas

Há dezenas (talvez centenas) de anos, uma viola foi enterrada no leito do Rio Pajeú. Desde então, quem bebeu de sua água, virou poeta. A lenda sertaneja pode até não ser verdade, mas foi a forma que o povo encontrou para explicar porque existe tanto talento para a poesia em um só lugar. “Bom dia, poeta”, diz um. “Bom dia, poeta”, responde o outro. Vendedor, professor, farmacêutico… Seja no improviso ou munido de violas, há uma população inteira de cantadores poetas em São José do Egito, a 404 km do Recife. Considerada berço imortal da poesia, a cidade preserva, há gerações, a tradicional cultura que floresceu às margens do rio.

A relação da cidade com as palavras começou na colonização do Brasil pelos portugueses: “Os portugueses trouxeram a sonoridade do baião de viola e as influências dos mouros, muçulmanos que invadiram a Península Ibérica. Digamos que os cantadores são uma evolução dos trovadores”, afirma Fábio Renato Lima, professor de história na cidade e coordenador da banda Vozes e Versos. Talvez por isso o vocativo esteja presente em qualquer cumprimento na cidade. É uma populaçaõ de “poetas”.

A história do local está ligada a duas cidades vizinhas. Eles acreditam que as pessoas tenham seguido o percurso do rio no período da colonização, passando primeiro pelo “ventre da poesia”, Itapetim (PE) e por Teixeira (PB), considerada local de troca cultural entre os ibéricos e o povo da região. São José do Egito é a mais próxima do rio e o maior entre os três municípios, terminando por acolher os poetas da região e ganhando a alcunha de berço.

“Podemos comparar o processo que aconteceu em São José do Egito com o que aconteceu na Grécia. O país fabricou muitos filósofos e a cidade pernambucana conseguiu dar sequência aos seus poetas. É impressionante como eles têm orgulho de suas raízes”, explica Lourival Holanda, professor de letras e entusiasta da cultura popular.

Os poetas do Pajeú são comparados com os trovadores porque a poesia feita por eles não é tão simples como você pode imaginar. A mais tradicional é feita de improviso e ela não é formada apenas por quaisquer palavras que vêm à mente, mas possuem rima e métrica, como explica o historiador Fábio Renato: “Ela já surgiu metrificada, não é uma poesia livre”, explica.

A métrica é feita pela contagem das sílabas tônicas em um verso. Por exemplo, se a primeira linha do verso tiver sete sílabas tônicas, as demais linhas precisam ter a mesma quantidade.

á a rima é considerada por eles um pouco mais simples. “Se for, por exemplo, uma quadra (quatro linhas), as linhas pares precisam rimar”, explica Fábio sobre o que forma a sonoridade poética e a declamação cantada e arrastada dos poetas da região.

A dificuldade de adequação não impede que novos poetas surjam na cidade, porque essa é a forma natural de expressão que os filhos do município encontram. Vinícius Gregório, começou nessa aventura aos 14 anos para descrever a saudade originada com a mudança para o Recife.

“Eu comecei a relatar as fases da minha vida e a temática varia entre a saudade, amor, amizade e questões sociais”, conta.

Um dos poetas mais famosos do Sertão pernambucano, Lourival Batista assinava suas obras com o próprio nome, mas era reconhecido mesmo como Louro do Pajeú. Precursor da “escola” da poesia de São José do Egito, teve o talento reconhecido por nomes políticos e artísticos de expressão nacional, com reconhecimento que o fez famoso em todo o país. 

Entre os nomes que o reverenciaram estavam Gilberto Gil – que, na época da Tropicália, visitou sua casa no Sertão pernambucano – ou Luiz Gonzaga, que não escondia admiração ao sertanejo. Tanto clamor o ajudou a ir além da poesia aos olhos da população local.

“A casa do meu avô era aberta para quem quisesse entrar. As pessoas se sentiam à vontade nela”, conta o neto Antônio Marinho, sobre as lembranças de sua infância. “Toda as noites, minha avó fazia uma sopa. Não me lembro de ter sentado uma única vez e não ter encontrado, além da minha família, ao menos uma pessoa desconhecida para o jantar. Meu avô não julgava ninguém. Já vi sentar com a gente prostitutas, bêbados e homossexuais, pessoas bastante discriminadas pelo povo da época”, completa. Após a ceia, era o momento reservado para a poesia, declamada se sobremesa fosse.

Tamanha popularidade fez com que o aniversário (6 de janeiro) de Louro do Pajeú virasse evento oficial da cidade. Poetas e cantadores de viola da região de diferentes gerações uniam-se na grande casa na cidade, mesmo depois da morte do poeta, em dezembro de 1992. “A festa sempre foi muito forte. Mas em 2005, minha avó, Helena, faleceu e a casa ficou fechada”, diz Marinho. Cansados de ver a receptiva casa fechada, desde 2011 a comemoração foi retomada, com direito a trio de forró pé-de-serra em frente à residência. No ano seguinte, virou festival municipal, com palcos e oficinas.

A marca de Lourival Batista continua exposta. “Criamos o Instituto Lourival Batista, a Casa do Repente. Na entrada, tem uma placa de 1989 que Miguel Arraes levou para meu avô homenageando o repente”, explica Marinho. 

Mayra Couto-Jornalista

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