Artigo - ocaso e escuridão: impactos de aríete na epiderme do dia

04 de Jul / 2023 às 23h00 | Espaço do Leitor

Poderia utilizar como epígrafe para esse bate-papo, como indicador apenas ilustrativo, ou como parte essencial do contexto, ou apenas como visão, produto do surto e do estado de nervos, duas lembranças tênues e vagas, ecos de leituras remotas que empreendi por alguma obrigação acadêmica.

A primeira diz respeito ao Dilema do Jacaré, citado talvez por Zenão de Aléia ou Sêneca ou Tirésias:

1. Conta-se que um magistrado teve sua única filha raptada por um jacaré. Procurando-o, ouviu do raptor a seguinte proposta: — Para ter tua filha de volta terás que me dizer acertadamente o que farei com ela: se vou devorá-la ou se vou devolvê-la. Se errares já sabeis o seu destino.

A segunda citada por Tom Zé, nunca por Roberto Carlos ou Julio Iglesias:

2. Conta-se que Euclides da Cunha chegando a Salvador para a cobertura da Guerra dos Canudos deparou-se com o seguinte quadro: uma criança, detida nos arredores de Remanso, estava sendo interrogada por um delegado de polícia sobre a organização do povo de Canudos e a ideologia do Conselheiro, ao que pergunta ou pergunta-se: —...mas Deus está de que lado?

Sejam essas duas reminiscências os nossos arautos: o dilema entre o acerto e o erro. Pois no caso do jacaré tanto o acerto como o erro levarão à dor. Instaura-se o mal-estar, suspende-se o tempo, aumenta-se o incômodo gerado por aquele velho sentimento de impotência, regente da orquestra das lágrimas. Esse imbróglio interior não tem, ou tem, como causa o mundo conhecido. Mesmo se sabendo que um jacaré jamais raptará alguém, o pacto para um caminho ideal de reflexão, sobre essa hipotética encruzilhada, é costurado entre nós desta sala, extensão do Universo, e o texto daquela ante-sala, extensão da Mente. É típica dos gregos a formulação do enigma, o edificar a esfinge, o especular sobre o destino. E essa esfinge, o jacaré, e esse Édipo avesso, o magistrado, se embrulham por duas figuras apenas citadas e que não podem ser vistas: a filha raptada e o ato final do raptor. O magistrado diante do despenhadeiro do erro, pois se acertar, perde, e se errar, perde também, espreme o seu peito contra o desconhecido, que ele não vê, no âmago do jacaré, transformando este mesmo jacaré em seu pesadelo acordado, sem apocalipse, sem revelação.

Pensemos agora na criança interrogada, perdendo a inocência ao especular sobre o desconhecido partido tomado por Deus, meio a desgraça de seu povo. O delegado, parente daquele jacaré, do dilema, é uma intrusão em sua simples meta de seguir a construção de um vilarejo pobre e miserável sob a pregação da austeridade e do sofrimento como ferramentas para a divinização. Ela, a criança, é o próprio seqüestrado, cuja formulação do dilema colocará por terra o seu seqüestrador que, se responder sobre qual dos lados repousa a benção de Deus, ferirá fatalmente toda a tradição cristã, desfigurando assim a empreitada das forças federais e fundamentando o sentimento messiânico do seqüestrado.

Gostaríamos, a muito custo, mas não ilegitimamente, de unificar os dois dilemas numa proposição que una a tristeza por não se poder entender aquilo que se vê, o medo por se entender aquilo que se vê e a angústia por não se poder nem ver nem entender. Minha argonave partiu da Grécia e aportou na fundação do Brasil, na Bahia do Monte Pascoal, no Nordeste insular e paradoxal. Senão, vejamos.

A música popular regional nordestina, essa que facilmente se chama forró, em todas as suas dimensões, assenta-se sobre dois pilares: Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro. O primeiro revela aos olhos da nação as agruras do espaço físico, geográfico, das secas e cheias, de rios efêmeros e fomes perenes, bem como o ambiente político com seus coronéis e padres, o poder paralelo dos cangaceiros e as mortes por vingança, o enxoval do vaqueiro e as festas populares. O outro nos apresenta os cabarés e as umbigadas, a ginga da peixeira e as aventuras dos forrozeiros, o amor putânico e o rala-coxa, mais alegre e urbano, enquanto o primeiro é predominantemente rural. Resumem, portanto, ou melhor, sintetizam a mitologia nordestina.

Temos falado até agora no par semiológico ver/não ver, luz/trevas. Antes, porém, do avanço, relato uma conversa partilhada com o professor Eduardo Portella quando afirmava ele que o povo dos cafundós (sim, lá também existem os cafundós!) da Europa do Leste, dos interiores tchecos, sérvios, húngaros, bósnios e além, sofrem de uma predisposição para a angústia. Tentei inserir uma certa angústia do homem nordestino, mas a conversa não evoluiu. Fiquei inseminado pelo tema e saí perseguindo meus murmúrios.

Deságua aqui nesta Baía, no coração do Leblon, a minha inquietação. Situações circunstanciais de opressão pelo meio ao que parece podem fomentar uma certa ponta de angústia. Pensei, assim, na aridez da vida dos miseráveis de Canudos que não sabiam, ou não conheciam, ou não viam motivo para tanta guerra. Alastrei meu olhar para os desdentados dos vales profundos, viventes-plantas cujas unhas dos pés nunca arranharam um pedaço de pão quente saído do forno ainda há pouco. Vi alguns migrantes caídos na Cinelândia. Abismando-me com essas paisagens distantes e essas outras presentes, calei. Ver dói, não ver, idem. Isso que senti aportou em Gonzaga e Jackson.

A música mais conhecida de Gonzaga é Asa Branca. Qualquer funkeiro ou rapper, rockeiro ou erudito conhece seus acordes simples, sua letra grave e sua estrutura quadrada. Mas olhemos para a letra com mais demora. Deixemo-la irrigar-nos.

Quando olhei a terra ardendo
Qual fogueira de São João
Eu perguntei a Deus do céu, ai
Por que tamanha judiação

Que braseiro, que fornalha
Nem um pé de plantação
Por falta d'água perdi meu gado
Morreu de sede meu alazão

Até mesmo o asa branca
Bateu asas do sertão
Então eu disse adeus Rosinha
Guarda contigo meu coração

Quando o verde dos teus olhos
Se espalhar na plantação
Eu te asseguro não chores não, viu
Que eu voltarei, viu meu coração.

Agora vejamos essa outra canção: Assum preto

Tudo em vorta é só beleza
Sol de Abril e a mata em frô
Mas Assum Preto, cego dos óio
Num vendo a luz, ai, canta de dor .

Tarvez por ignorança
Ou mardade das pió
Furaro os óio do Assum Preto
Pra ele assim, ai, cantá de mió

Assum Preto veve sorto
Mas num pode avuá
Mil vezes a sina de uma gaiola
Desde que o céu, ai, pudesse oiá

Assum Preto, o meu cantá
É tão triste como o teu
Também roubaro o meu amor
Que era a luz, ai, dos óios meu

Muito bem, as duas são de Gonzaga e Humberto Teixeira. Pensemos em nossos dilemas epigráficos: sofrer por ver e sofrer por não ver, em suas leituras livres. E, agora, volvamos um olhar sobre o título atribuído a esse roteiro: ocaso e escuridão. Se em Asa Branca o ato de ver causa o desespero, porque não dizer a angústia, por poder observar que tudo está sendo devorado e que o dilema se instaura (partir ou morrer), em Assum Preto dá-se o contrário: não ver proporcionará o cantar mais lindo. A reflexão vai bem mais além quando se prefere trocar a luz dos olhos pelas grades da prisão. Agora intelectualizemos o par opositivo: diante da luz, a angústia, longe da luz, o belo. Parece-me o paradoxo ditado e vivido por Homero, em si próprio, fundando toda a literatura universal, inclusive a metamorfose coleóptera de Gregor Samsa. Agora pairemos sobre esta outra canção cantada por Jackson: Lamento cego

Irmão, que está me escutando
Preste bem atenção.
Já vi um cego contando
Sua história num rojão.

Quem vê a luz deste mundo
Não sabe o que é sofrer.
Que sofrimento profundo
Querer ver e não poder.

Irmão, mais triste eu fico
Com tanta ingratidão
Dois gravetos de angico
Me tiraram a visão.

Por isso nós tamo aqui
Eu e minha viola.
Por Jesus vamos pedir
Meu irmão, me dê uma esmola

Que Deus recompense então
A sua caridade
E lhe dê sempre a visão
Saúde e felicidade.

É uma composição de Jackson e Nivaldo Lima. Se em Asa Branca ver é tomar consciência das próprias catástrofes e ser obrigado a optar sobre um dilema, em Assum Preto, não ver é proporcionar a manifestação do Belo. Aqui neste lamento há o maldizer por não poder enxergar ou como diz a letra “que sofrimento profundo querer ver e não poder.” Mas, afinal, que sofrimento é esse? Qual o seu nome? Onde se instala? Nossa sociedade globalizada é de alma visual. A visão sobrepõe-se ao tato e ao metafísico. O fim do pensar. A velocidade. A banalização da sexo, da violência e da literatura são ferramentas poderosas no processo de massificação e homogeneização cultural. As nossas empresas de telefonia celular sabem disso. Suas máquinas não mais só falam, elas fotografam, elas transmitem ao vivo. O cego de Jackson sofre por miseravelmente não poder ver, não sentir-se inserido nas cores. Roga a esmola e em contrapartida oferece como paga a recompensa de Deus com a visão eterna, com a saúde e com a felicidade. Contraditoriamente, já que estamos dialogando sobre dilemas, o fim das promessas do progresso e do bem-estar oferecido pela tecnologia e pela técnica, as benesses do paraíso, o leite e o mel, esses dons assinados pelo mesmo Deus, não nos presenteiam mais com saúde e felicidade.

Veja-se o colapso da saúde nos países periféricos e a escassez do emprego em todo o mundo. O dilema de Hamlet passaria de ser ou não ser a ver ou não ver. A angústia da Europa Oriental não é maior lá ou cá. Não há predisposição deste ou daquele povo. Se há algum tempo a Ilustração nos ofereceu a Luz, a pós-modernidade nos apresenta a conta e a Light, extensão do Mundo-Capital-Consumo, foi privatizada.

Ainda nos resta o diálogo dos dois cegos citados por Leonardo Mota em seu Cantadores. Diz o primeiro:
Tenham pena deste cego,
Filhos da Virge Maria;
Eu sou cego de nascença,
Nunca vi a luz do dia!
Ao que o outro respondeu:
Quem nasceu cego da vista
E dela não se lucrou,
Não sente tanto ser cego
Como quem viu e cegou!

Um embate sobre a maior miséria. Agora ouçamos: perguntei a um desses policiais que participaram do massacre do Carandiru qual jacaré seqüestrara minha lâmpada de Aladim. Veio-me a resposta como uma bala: surda, certeira e devastadora extraída do poema de Drummond:
Nesse país é proibido sonhar.
Findo, senhores, com uma canção do Cego Aderaldo, um parvo cuja angústia foi ver demais: As três lágrimas

Eu ainda era pequeno
mas me lembro bem
de ver minha pobre Mãe
em negra viuvez.
Meu pai jazia morto
Estendido em um caixão
E eu chorei então
Pela primeira vez!
E a pobre minha Mãe
Daquilo estremeceu:
De uma moléstia forte
A minha mãe morreu.
Fiquei coberto em luto
E tudo se desfez
E eu chorei então
Pela segunda vez.
Então, o Deus da Glória,
O mais sublime artista,
Decretou lá do Céu,
Perdi a minha vista.
Fiquei na escuridão,
Ceguei com rapidez
E eu chorei então
Pela terceira vez.

Meus prantos se enxugaram.
Das lágrimas que corriam
Chegou-me a poesia
E eu me consolei.
Sem pai, sem mãe, sem vista,
Meus olhos se apagaram;
Tristonhos se fecharam

E eu nunca mais chorei.

ADERALDO LUCIANO, além de músico, poeta e cangaceiro urbano é professor doutor em Ciencia da Literatura

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