Artigo: Da moléstia e da morte

11 de Oct / 2021 às 23h00 | Variadas

Era quase um menino. O cabelo parecendo ser de porco espinho. O rosto redondo de uma palidez que se confundia com um verde sem brilho e um amarelo desbotado. Não devia ter dezoito anos. Ali estava como um condenado à morte, se consciência tivesse da realidade vivida. Sofria de insuficiência real. Três vezes por semana no hospital, onde o conheci. Eu, acompanhando a via crucis de papai, na mesma penitência de se fazer presente.

Às vezes, o menino abria a boca para um comentário. As enfermeiras não o deixavam tomar água. Ele, no final de semana, em casa, se esbaldava de água de coco. Até que se sentia mal e era trazido para Aracaju. No hospital já um leito a sua espera. Era sua resposta, ele que apenas queria ter o prazer de fazer algo diferente do resguardo que a moléstia impunha. Eu ouvia o desabafo.    

 Com papai não era diferente, apesar de não ter a água de coco como objeto de desejo. Ia além. O diabo das propagandas na televisão de suco e de cerveja, a jarra superlotada do líquido bordô, o gelo do líquido a marcar o copo e a jarra, e papai, na cadeira de balanço, a ver e presenciar, a vontade pisoteando a dieta de beber pouco, para a urina não ficar no corpo. A mesma cena nas propagandas de cerveja. Era um suplício ver a águia querendo voar e as asas, presas a recomendações médicas, sem decolar.  O líquido limitado a três pequenos copos por dia. A águia não decolava. Tormento diário de quem, a esta altura, se limitava a programa de televisão, sem poder mais ir à rua, a morte pisando na calçada e empurrando a porta.   

Eu, muitas vezes, de máquina na mão, o fotografava. Ele calado, só quebrando o silêncio para perguntar se era para o mausoléu. Eu desconversava. Do grupo que fazia hemodiálise ninguém se curava, observava. Só deixava de aparecer no hospital quando morria, reiterava. Eu voltava a tergiversar. Papai ouvia e nada comentava, sinal que não acreditava no que eu dizia. Já perto do óbito, internado, eu de companhia, me revelou que Oliveirinha, falecido há poucos dias, teve sorte porque o caixão foi barato. Era assim que, também, queria. Nada de despesas com urna funerária cara. Não demorou a ser colocado em um caixão simples. A vontade concretizada. A terra, que lhe serviu de berço, se abria em sepultura. Então, se transformou em saudade. 

Vladimir Souza Carvalho-Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras

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