Artigo: Os bichos e nós, nestes tempos difíceis

09 de Jul / 2021 às 23h00 | Espaço do Leitor

No jardim e no quintal, em meio a notícias inaceitáveis a nossa lógica, nossa sede de viver, em cenário aterrador, nunca antes imaginado, incompreensível, inaceitável, um mundo de paz, tranquilidade, existe, ao nosso lado, aquele em que continuam a viver os animais.

Todas as manhãs, logo cedo, eles aguardam, indo de galho em galho, as bananas e goiabas que a gente dependura nos arbustos, no jasmim, no pé de lilás. Os pequenos chegam primeiro: canários, sanhaçus, outros de duas cores – laranja, preto, cabeça vermelha, como se chamam? uns amarelo e preto, acostumados a banhos matinais,na mangueira do jardim – e outros. Depois vêm os sabiás, que imprimem respeito aos pequenos, por seu tamanho- como acontece às vezes aos humanos, ai de nós.

No pé de carambola, devastado por um casal de louros, logo seguido pelos filhotes, só restam pedaços verdes dos frutos, que eles colhem pelos talos, indiferentes aos desesperados latidos dos cachorros. Que não se acostumam ver os saguins, comendo os frutos que restaram e cuspindo sobre eles, cachorros, o que não conseguem mastigar. Durante algumas semanas fomos assolados por lagartas de fogo.

Medo de que alguma caísse sobre nós, mas como dar cabo delas, se mais tarde teríamos a alegria das borboletas – de um amarelo suave ou tricolores (preto, vermelho, amarelo dourado). À noite chegam os vagalumes e outro dia entraram em casa, atraídos pela luz da telinha, um espetáculo mais fascinante do que nos mostravam as últimas notícias.

Ferreira Gullar, escreveu “as coisas não precisam de nós.” Mas, e os bichos? O grande poeta Rainer Maria Rilke, tão inserido na natureza, a ponto de nos aconselhar a leitura imprescindível dos livros de Jens Peter Jacobsen (leiam as Cartas a um jovem poeta) dizia sim, que as coisas precisam de nossas vozes,  palavras que falem de suas lições. A nós que “cem vezes por dia caímos da árvore”, conforme ele escreve... Que gritamos, só às vezes “com a pureza do pássaro que é um ser desamparado, “coração solitário lançado às alturas, na intimidade do céu”.

Nós, que apenas pressentimos na expressão do animal, o espaço profundo que há em sua face, nesse ser espontâneo, conforme descreve na Nona Elegia de Duino. Que ultrapassa seu fim. Que “diante de si tem apenas Deus, e quando se move é para a eternidade, como correm as fontes”. Uma lição de confiança e despreocupação, a nós outros, que em tudo vemos o abismo, a armadilha que “se oculta em torno do livre caminho”.

Luzilá Gonçalves Ferreira-Membro da Academia Pernambucana de Letras

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