Em tempos de novo vírus, caem pautas, padece a informação. Mas as mazelas políticas do Brasil e os índices de pobreza não desaparecem

27 de Mar / 2020 às 23h00 | Coronavírus

Prescriptum: Se você não aguenta mais ouvir sobre o corona, eis um texto sobre outra coisa. Se, ao contrário, o que você quer é mais informação sobre a pandemia, por favor, fique. Em tempos de mundo globalizado, quase tudo está relacionado.

Bong Joon Ho, diretor do premiado filme Parasita, revelou numa entre as inúmeras entrevistas que deu durante a temporada internacional de premiações do cinema, que o motivo de sua curtíssima declaração após uma surpreendente ovação de oito minutos no festival de cinema de Cannes era muito simples: ele e elenco estavam com fome. Sim, a equipe que levou à tela a diferença de classes existente na rica Coreia do Sul deixou de lado a pompa da homenagem francesa por um motivo humano, demasiado humano.

Se até pessoas abastadas e famosas sucumbem a um curto período de privação de comida, o que se dirá daqueles que sofrem com isso diariamente?

Porém, há quem diga que fome não existe no país, a começar por quem mais deveria combatê-la, o chefe do Executivo. Há outros, assim como o presidente, que pensam que fome e pobreza são frescura, questão de caráter ou exclusividade de determinados povos, como quando disse: “Alguém já viu um japonês pedindo esmola por aí? Porque é uma raça que tem vergonha na cara. Não é igual essa raça que tá aí embaixo ou como uma minoria tá ruminando aqui do lado”.

Em um poderoso artigo para o The Correspondent, contendo informações embasadas – como deveria ser todo jornalismo, obviamente -, estatísticas e provas, e que deveria ser lido por toda a população mundial, especialmente governantes, o repórter dispara, certeiro: “Pobreza não é falta de caráter. É falta de dinheiro”. Ponto. “Os nossos esforços para combater a pobreza baseiam-se muitas vezes na concepção errada de que as pessoas pobres devem conseguir sair sozinhas da lama. Mas a luta incansável para sobreviver tem efeitos graves no cérebro. A pobreza não é uma falta de caráter – é uma falta de dinheiro.”

De forma resumida, a reportagem vai inquirir: “Por que as pessoas pobres são mais propensas a cometer crimes? Por que são mais propensas à obesidade? Por que elas usam mais álcool e drogas? Em suma, por que as pessoas pobres tomam más decisões? É simplesmente porque… elas são pobres. Nesta reportagem, analiso pesquisas desde as Grandes Montanhas da Carolina do Norte até Tamil Nadu, no sul da Índia, para examinar uma teoria revolucionária que explora os efeitos cognitivos de viver na pobreza. O que descobri é que isso pode corresponder à perda de catorze pontos de QI. Ou, dito de outra forma, a pobreza tem o mesmo efeito cognitivo que a perda de uma noite de sono. A diferença é que se pode recuperar este sono, mas não se pode fazer uma pausa da pobreza. E as formas tradicionais pelas quais os governos tentam combater a pobreza também não ajudam, porque normalmente se concentram em auxiliar uma pessoa a superar a falta de algo, através da educação, orientação financeira ou programas de emprego. Mas pobreza e más decisões não são falta de nada, a não ser dinheiro.”

Uma procura pelas palavras “fome” e “pobreza” na seção de buscas de alguns dos principais veículos noticiosos brasileiros nos mostra que o tema está presente, mas aparece de diversas maneiras, de fait divers a pautas em editorias de economia e política. Às vezes em entrevistas, muitas vezes de forma indireta, relacionado a outros assuntos. Em décadas anteriores, era possível ver o assunto abordado de forma dramática, às vezes de caráter sensacionalista ou apelativo, como a capa da revista Veja mostrando que crianças costumavam comer calango.

Até 2014, ano em que saiu do mapa da fome, o país conseguiu retirar da pobreza extrema quase 40 milhões de pessoas graças, em grande medida, ao sucesso de programas sociais como o Bolsa-Família. Hoje, os dados voltam a assombrar e cortes neste mesmo programa impulsionam o aumento da miséria e desigualdade.

Desigualdades e fome tendem a diminuir em tempos de bonança ou estabilidade econômica. Mas não são suficientes. Requerem governantes que saibam as estatísticas do país e não as neguem ou escondam, assumam os problemas e não tentem acobertar o baixo PIB com comediantes ou xingamentos a jornalistas que fazem perguntas necessárias. Afinal, política não é feita de aforismos, como o livro de Friedrich Nietzsche. Contudo, os adágios presentes na obra vão muito mais além do que “pergunta no Posto Ipiranga”.

Post scriptum: Em tempos de novo vírus, caem pautas, padece a informação. Mas as mazelas políticas do Brasil e os índices de pobreza não desaparecem com o covid-19. Nem se tornam menos graves porque não estão nas primeiras chamadas. A pandemia vai passar. Mas as consequências da má gerência do executivo brasileiro vão se agravar ainda mais se nada for feito.

Juliana Rosas é doutoranda no PPGJOR/UFSC e pesquisadora do objETHOS.

Juliana Rosas

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