Da Bahia para o mundo: o início, o meio e o fim de Raul Seixas

28 de Dec / 2019 às 23h00 | Variadas

Quem diria que aquele moleque, nascido na Bahia, fã de Elvis Presley, e que se contorcia quando estava no palco, chegaria à Cidade Maravilhosa e compraria um Corcel 73? Pois é, Raul Santos Seixas deixou registradas 312 músicas, e conseguiu, como ninguém, transitar em diversos estilos, desde o rock, passando pelo baião, o samba, o brega, o iê-iê-iê e muitos outros.

Um sujeito à frente do seu tempo, e que (quase) ninguém, na época, entendia o que dizia. E boa parte dessa trajetória, ao longo de 44 anos de vida, metade deles nos palcos ou estúdios, agora ganha luz no livro Não diga que a canção está perdida, de Jotabê Medeiros. “Raul é um personagem rico, misterioso e cuja obra analisa profundamente a identidade nacional”, frisa o autor.

Tudo bem, a vida de Raul Seixas é recheada de idas e vindas, mistérios, histórias malucas ou “mal contadas” (algumas, inclusive, viraram letras de músicas). Abandono de show, pactos com o além, encontro com John Lennon, candidatura a deputado federal, e por aí vai. Mas o caubói fora da lei, que manda recado a Al Capone e carimba o passaporte para o espaço, viveu momentos fantásticos. “Era um homem de grande interesse nas coisas não explicáveis, na possibilidade da vida em outros planetas, na fé universal, além das religiões.”

Nascido em Salvador, em 28 de junho de 1945, Raul, depois de fazer sucesso na capital baiana, se muda para o Rio de Janeiro, em 1968, juntamente com seus companheiros da então banda The Panthers (Os Panteras), “passando fome por dois anos na Cidade Maravilhosa.” Surge a amizade com Chico Anysio e Jerry Adriani, e o sucesso Let me sing, let me sing.

No ano seguinte, com o fim dos Panteras e deprimido com o fracasso, Raul volta para Salvador, e em 1970, aí sim, definitivamente, desembarca no Rio, mas como produtor. Ao lado da então esposa Edith Wisner, vai morar no Leblon. E em maio de 1972, conhece o parceiro que mudaria o rumo de toda esta história: Paulo Coelho.

Ao lado do Mago, escreveu alguns de seus maiores sucessos, que até hoje povoam o imaginário popular. No ano seguinte ao que se conheceram, Raul lança aquele que seria seu primeiro disco solo, Krig-há, bandolo!, com várias músicas em parceria com Paulo Coelho, e a adoração de ambos pelo ocultista britânico Aleister Crowley. E é aí que o livro chega ao seu ponto mais polêmico.

DESGASTE PSICOLÓGICO: Em maio de 1974, conforme relata Jotabê Medeiros, Raul é chamado para depor no Departamento de Ordem Política e Social (Dops). Ele teria chamado Coelho para ir junto. O ‘papo’ com as autoridades teria girado em torno das cinco músicas compostas pelos dois para o disco lançado no ano anterior e que já alcançava a marca de 100 mil cópias vendidas.

No livro, o autor descreve os momentos que se passaram a seguir. Raul deixou o local com menos de meia hora, enquanto Coelho, que se preparava, tranquilamente para ir embora, sem que esperasse por isso, foi chamado para uma sala escura onde, após três longas horas de espera, foi submetido a um extenso interrogatório, no qual, quase sem perceber, cita o nome de sua então esposa, Adalgisa Rios, coautora do encarte do disco.

O desgaste psicológico não parou por aí. Liberado, ele foi novamente conduzido, na sequência, desta vez juntamente com a esposa, e ambos foram torturados. Depois desse episódio, as relações azedaram, de Paulo com Raul e do Alquimista com a esposa. Com o cantor, a pendenga era uma suposta entrega. “Procuro os amigos, procuro o cantor, e ninguém responde aos meus telefonemas”, relata Coelho. Já Adalgisa passa a considerá-lo um completo inimigo.

Pelo Twitter, Paulo Coelho deixou no ar o mistério que sempre os acompanhou: “Não confirmei e não confirmo nada. Eu apenas vi o documento e me senti abandonado na época”, postou. O tal documento, que está no Arquivo Público do Rio e aparece descrito no livro, relata que a polícia chegou até o escritor e sua esposa “por intermédio do cantor”. Ou seja, teoricamente, Raul já sabia que Coelho seria detido e interrogado, quando o ‘convidou’ a acompanhá-lo.

Exilados nos Estados Unidos, os dois se afastaram, o relacionamento esfriou. Mas na sequência lançaram, novamente em parceria, aquele que seria um de seus grandes sucessos, Gita (1974), o que ‘provocou’ o retorno de ambos ao Brasil. Novo aeon (1975), considerado uma obra-prima, mas que não repetiu o sucesso de vendas, e Há 10 mil anos atrás (1976), de volta aos trilhos das boas vendagens, acabam sendo (quase) os últimos da parceria com Paulo Coelho. Foram naquele período.

O dia em que a Terra parou (1977), primeiro sem seu McCartney, chega com Maluco beleza, a canção até hoje mais tocada de Raul. Na biografia, Jotabê ainda ressalta as várias ‘apropriações’ de Raul, que pegava ritmos ou letras de outros cantores e os colocava em suas canções.

Em 1978, Paulo Coelho volta à ativa ao lado de Raul, no disco Mata virgem, em algumas canções. Agora sim, é o ponto final da relação. Ainda está no livro a cirurgia à qual Raul foi obrigado a ser submetido para arrancar todos os seus dentes.

E, finalmente, a parceria (de grande sucesso) com Marcelo Nova, outro baiano, que tinha o “DNA” de Raul. Nova era vocalista de sucesso nos anos 80, e garantiu uma sobrevida ao veterano cantor sem, é claro, como de costume, render polêmica. “Marcelo jamais se aproveitou de Raul. Sempre teve prestígio suficiente para caminhar sem auxílio. Mas era um fã de Raul Seixas desde os 10 anos de idade, queria ver o ídolo em pé, em cima de um palco, e não esquecido. Fez de tudo para que isso fosse possível, e conseguiu”, argumenta Jotabê Medeiros. Daí nasceu o disco A panela do diabo (1989), o último de Raul, já póstumo.

Em 21 de agosto de 1989, Raul saiu de cena definitivamente. Vítima da conta que chegou, depois de uma vida caminhando lado a lado com a perigosa mistura de álcool, uísque e cocaína, o cantor teve uma morte precoce, após amargar o ostracismo na carreira, antes da parceria com o vocalista do Camisa de Vênus.

Anarquista, revolucionário, e até profeta para alguns... Ele foi encontrado morto em sua cama por Dalva, sua então cuidadora. Um verdadeiro herói da classe trabalhadora, o que ficou claro em sua despedida. Velado por office-boys, pedreiros e artesãos, o corpo de Raul sofreu até uma ameaça de ser roubado, tamanha a idolatria que despertava. A lápide, aliás, teve que ser concretada devido às várias tentativas de furto.

Tudo bem se você preferir ser uma metamorfose ambulante, e discutir Carlos Gardel. Ou ainda se quiser ser o tal maluco beleza, que espera o metrô linha 743 e vai ao jardim zoológico dar pipoca aos macacos. Aquele, que nasceu há 10 mil anos atrás, que clama por uma carona no disco voador, ou fica imóvel na praia. Saiba que nunca se vence uma guerra lutando sozinho, que ninguém nesse mundo é feliz tendo amado uma vez. Pois pode ser que determinada rua por onde você já passou não tornará a ouvir o som dos seus passos. Mas, no final, só não diga que a canção está perdida: tente outra vez.

Daniel Sebra JEM

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