O bioma Caatinga, que serve de cenário para muitas obras, como O Cangaço na Bahia, de Rubens Antônio da Silva Filho, e tantos outros autores, foi recentemente celebrado no Dia Nacional da Caatinga por ser um dos biomas mais ricos e peculiares do Brasil.
Na Bahia, a Caatinga ocupa mais de 50% do território estadual.
Mas não foi a peculiar vegetação do sertão catingueiro que atraiu o mestre Rubens Antônio para um tema que está entranhado na história da região nordestina, incluindo o estado da Bahia. A história do cangaço, tendo como personagem central Lampião e seu bando, foi tema de anos de estudos do professor, que publicou dois livros nos quais procura ser fiel aos fatos da época em meio ao cenário da Caatinga.
De acordo com a colunista Isabel Oliveira, site A Tarde ao passo que conta as histórias do bando, Rubens desenhava o cenário das terras dos muitos cactos e espinhos, dos frutos e folhagens que sustentavam os moradores do sertão, que muitas vezes corriam para o meio da mata caatingueira para sobreviver e fugir das crueldades do bando de Lampião quando eles resolviam parar em fazendas ou na cidade. Quem conta um pedaço dessa história é Ana Cataldi, cujos avós e bisavós viveram à sombra do medo na região onde Lampião e seu bando eram temidos.
“A população saía de suas casas e se escondia na Caatinga, tremendo desconforto, pisos pedregulhados, muitos espinhos. A minha mãe tinha 14 anos e fugiu com os familiares e meu avô. Meu bisavô era coronel, era o mandatário da cidade, mas todo mundo fugiu com medo para a Caatinga. Minha avó contava e minha mãe conta que minha avó botava panos nas bocas das crianças pequenas para não chorarem, para não chamarem atenção. Todas as famílias [do sertão] passaram por isso”, conta Cataldi.
Era da palma e de outras folhagens e frutos que os moradores, muitas vezes em estado de extrema pobreza, se alimentavam; ou os próprios bandos e moradores em fuga quando não havia água nem comida para devorar no meio mata. Um dos relatos de fuga da população é descrito pelo historiador:
“Dia 23 de janeiro, chegou uma canoa a Petrolândia, em Pernambuco. Nela, um grupo com chapéus de couro quebrado, cartucheiras passadas, grandes punhais à cinta, pistolas e fuzis. Assustavam. A população começou a fugir para a Caatinga”. Trecho que consta no livro Cangaço na Bahia, no volume Cavalos do Cão, à pág. 98, de Rubens Antonio.
“À sua frente, uma árvore de favela e outra de pau-ferro. Dominando o restante do entorno, burras-leiteiras, caatingueiras, cabeças-de-frade, carapibas, caroás, cunanã, favelas, gravatás, icozeiros, imbiuruçus, licuris, macambiras, mandacarus, mulungus, palmatórias-do-inferno, quipás, quixabeiras, umburanas, umbuzeiros, xique-xiques, uma infinidade de plantas típicas da Caatinga”, cita o professor Rubens no trecho do livro.
Um dos símbolos de resistência do sertão da Caatinga, a palma serve para os animais e para os sobreviventes durante a seca e para além dela. Rosa Gonçalves, chef e professora de gastronomia, vive e respira o sertanismo por todos os poros. É ela quem filosofa sobre o poder da palma como grande símbolo da Caatinga e não apenas como forragem para os animais.
“Ela é muito usada, sempre foi usada pela população, pela alimentação no dia a dia, para nutrir essa população. Por isso, tem um valor histórico, um valor cultural, um valor social, um valor afetivo. Porque ela serviu para alimentar em momentos difíceis. O que resistia era a palma em momentos de seca, de falta de alimento da população. A palma estava sempre ali presente, auxiliando essas famílias a terem alimento na mesa. E o sabor dela também é muito apreciado por essa população”, conta Rosa.
Rosa pontua que, hoje, não se trata de um alimento para saciar a fome, mas de um alimento cultural, de resistência.
“Hoje, nós sabemos que a realidade nas regiões de sertão, nas regiões de Caatinga, no interior do Nordeste em geral, é totalmente diferente porque a população tem acesso à água, à energia elétrica, a programas sociais que auxiliam no desenvolvimento. Mas mesmo com tudo isso, a palma é um alimento que faz parte da cultura de algumas regiões do Nordeste, então não é mais uma questão só de ter uma alternativa para a fome, para saciar a fome. Ela é um alimento que faz parte da resistência cultural, social e histórica da população”, filosofa.
A gastrônoma chama atenção para o novo conceito, um novo olhar da gastronomia para as plantas consideradas como Plantas Alimentícias Não Convencionais, as PANCs, que são mais valorizadas pelo seu teor nutricional.
“Hoje, com esse novo momento da gastronomia brasileira, gastronomia mundial, que vem auxiliando a divulgar a nossa cultura alimentar, a palma ainda é pouco utilizada, pouco divulgada. Mas eu vejo um crescente nessa utilização da palma. A gente chega em aulas, em eventos, em festivais e são feitas releituras de pratos tradicionais do sertão. Eu acho que ainda tem muito a se explorar, muito a divulgar”, diz.
E finaliza: “A palma vai muito mais além do que só saciar a fome do povo nordestino, do sertão das regiões da Caatinga. Ela é rica em nutrientes. A palma possui ferro, possui cálcio, vitamina A, vitamina C, colágeno e muitos outros nutrientes. Hoje, através do consumo da palma, que ainda faz parte do dia a dia de diversas regiões, ela nutre a população. Independente de estudos científicos, estudos nutricionais, a população já sabia que a palma dava força, dava vitalidade, dava brilho na pele. A sabedoria popular é o registro da nossa ancestralidade, da nossa história, da nossa cultura, e o povo sabia, entendia que, além de saciar, nutria essa população”, afirma.
A palma, além de nos lembrar o cangaço pela escrita do mestre Rubens Antonio, é o tema da nossa comidinha deste fim de semana pelas mãos da chef Rosa, que, por estas linhas, se expressou com poesia e delicadeza.
A Tarde Foto reprodução
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