Todos os anos o distrito sertanejo de Posto da Serra, na cidade pernambucana de Exu, na Chapada do Araripe, acolhe uma movimentação diferente de outras épocas do ano. A realização de oficinas e apresentação de experiências de mestres e mestras tradicionais durante o Encontro de Saberes da Caatinga.
De uma forma geral, a proposta do encontro anual, realizado desde 2016, é valorizar e partilhar as práticas e saberes de parteiras tradicionais, benzedeiras, benzedores, raizeiros e raizeiras, além de mestres e mestras da cultura popular. Confira reportagem na integra Aqui-Brasil de Fato-Do ancestral ao político: Encontro de Saberes da Caatinga defende ‘patrimônios’ do Bem Viver.
O raizeiro Antonio Alencar destaca o papel de reivindicação social dos mestres e mestras de saberes tradicionais. "São pessoas que foram reprimidas por muito tempo. Antes, não podiam se declarar rezadores, curandeiros ou parteiras sem sofrer preconceito. O encontro busca resgatar a cidadania e dar visibilidade a esses protagonistas, incentivando jovens a continuarem essas práticas com orgulho", define.
"Tudo o que acontece é voltado para o conhecimento ancestral. Até mesmo as oficinas propostas estão voltadas para esse conhecimento ancestral. Por mais que pareça uma prática dos dias de hoje, cada uma tem sua ligação com a ancestralidade", explica a terapeuta Laila Menezes, também conhecida como Catxekwyj Krahô.
Perto de completar uma década de existência, o Encontro de Saberes da Caatinga segue uma natureza autônoma, com parte dos recursos oriundos da própria comissão organizadora. A organização é feita pela Rede de Agricultores Experimentadores do Araripe. Apesar dos desafios, a cada ano, os números indicam um crescimento nas atividades e no público presente. Por exemplo, há três anos foram realizadas cerca de 25 oficinas voluntárias, 55 a menos que nesta edição. A inclusão de rodas com mestres e mestras da cultura popular há três anos também é uma demanda dessa expansão.
"O Encontro de Saberes sempre se renova. Por mais que pareça que é a mesma coisa, há sempre temáticas novas em cada roda. Então, o que a gente deseja é que ele cresça cada vez mais e mais pessoas se abram para essa proposta e ela ultrapasse as fronteiras e os limites que têm sido criados por preconceitos", destacou Laila Menezes, ao lembrar que neste ano houve também um diálogo com uma igreja evangélica local para apoio na realização do Encontro.
Na cidade Natal de Luiz Gonzaga, a sanfona típica do forró foi acompanhada por outros ritmos e instrumentos.
Gratidão também foi o sentimento da pesquisadora francesa Garance Desplat durante o evento. Ela está no Brasil para aprender sobre agroecologia e colocar os ensinamentos em prática no seu país. "Já na França, ouvi falar do Sertão como uma região importante para o desenvolvimento de técnicas de agroecologia", conta.
De acordo com ela, a experiência superou as expectativas. "Estou muito surpreendida com o bioma Caatinga, que é muito particular e impressionante. É incrível poder descobrir um lugar como esse. Estou muito agradecida por estar aqui e aprender sobre tudo isso. Uma experiência incrível", define.
A bióloga Manuele Eufrásio lembra que, anos atrás, raizeiros e benzedeiras eram perseguidos e marginalizados no território. Na avaliação dela, o evento contribui para a legitimação e valorização desses saberes no imaginário local. "Inicialmente, os rezadores vinham tímidos, com medo de se mostrar. Hoje, eles se reconhecem, falam abertamente e são acolhidos, sem julgamento", compara.
Essa conversação entre diferentes públicos e produção partilhada de saberes se sustenta em princípios como a defesa do Bem Viver e o reconhecimento da oralidade enquanto paradigma de conhecimento. "Todos os mestres e mestras da roda passam o seus saberes através da oralidade. Isso facilita para todo mundo. Eles simplesmente sentem e falam. Não é um conhecimento elaborado só na racionalidade, ele vem do coração", explica.
Érica Rodrigues ministrou a oficina de Yoga do Riso e destacou que, ao invés de se pensar em "cartilhas metodológicas", o encontro prioriza abordagens vivenciais e práticas comunitárias. "Busco os saberes dos mais novos e dos mais velhos para agregar, interiorizar e transformar. Aqui cada um entrega o que tem de melhor, em um compartilhar genuíno, abundante e amoroso", definiu.
Para Verônica Carvalho, o "ano só começa depois do Encontro de Saberes da Caatinga". Ela faz parte do quintal afroecológico Terreiro das Pretas, localizado no Crato, no sertão do Cariri cearense, e participa do evento desde a segunda edição, em 2017. Enquanto mulher preta, Valéria destaca que, apesar da região ser conhecida pelo aspecto das romarias do Padre Cícero, há centenas de espaços de culto de candomblé e umbanda.
"Entramos na seara do Saberes da Caatinga trazendo essa identidade do povo. Quem é esse rezador? Quem é esse agricultor? O semiárido brasileiro, a Chapada Nacional do Araripe é diversa e ela aglutina várias identidades. Então, eu chego no encontro e digo que sou preta, sou mulher de terreiro", destaca Carvalho, ao lembrar que nas primeiras edições muitas pessoas ainda sentiam o peso do preconceito para afirmar suas identidades coletivas.
Para ela, o aspecto coletivo favoreceu a afirmação das identidades ao longo dos anos. "Se fala muito em ancestralidade. E que ancestralidade é essa que pulsa nessas manifestações? Eu acho que deu certo porque outras pessoas foram chegando, foram se identificando com o nosso jeito de ser, de falar. Isso foi muito interessante e muito rico para nós, para os nossos coletivos e para todo mundo", ressalta.
A partir dessas experiências, Verônica defende o reconhecimento efetivo e prático do papel social de mestres e mestras nas ações do Estado brasileiro. "Quando falamos na politização do assunto é nessa perspectiva de compreender esse povo como sujeito das políticas públicas. Porque no papel leva-se em conta esses saberes, mas na implementação ainda é extremamente desafiante. Que políticas são essas que deixam, por exemplo, mestres e mestras da cultura popular morrendo e passando necessidade? O encontro é também um espaço para discutir as violências, inclusive as impostas pelo Estado", afirma.
A pesquisadora Islândia Carvalho, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Pernambuco, segue a mesma linha. Ela defende o evento como forma de expandir o diálogo e reconhecimento político dos saberes de mestras e mestres tradicionais. "O encontro é uma oportunidade da pesquisa se aproximar mais do conhecimento popular. A partir dessa interlocução, temos ferramentas de diálogo para o cuidado em saúde no Sistema Único de Saúde. É extremamente importante compreender como a comunidade cuida da sua saúde, inclusive em aspectos espirituais. Assim podemos melhorar o cuidado do Sistema Único de Saúde", defende.
O encontro é realizado na Chapada do Araripe, uma formação geológica de grande relevância no Nordeste, estendendo-se pelos estados do Ceará, Pernambuco e Piauí. O território abrange aproximadamente 9.725 km² e se destaca por sua biodiversidade e importância cultural.
Entretanto, de acordo com participantes do Encontro, o patrimônio natural da Chapada do Araripe está ameaçado. O "território está sob ataque. Especuladores e grandes empresas promovem a destruição da terra, substituindo a vegetação nativa por monoculturas mecanizadas, como soja transgênica", denuncia um manifesto elaborado durante o encontro.
O texto completo chegou a ser lido durante uma intervenção política de representantes do evento na Conferência Intermunicipal do Meio Ambiente, reunindo gestores públicos de 14 municípios e do governo do Estado de Pernambuco, no dia 22 de janeiro, na sede da cidade de Exu.
"Monoculturas de grande escala consomem quantidades excessivas de água, comprometendo os recursos hídricos locais e prejudicando as comunidades que dependem desses mananciais", afirma outro trecho do "Manifesto pela Vida da Chapada do Araripe".
Indagado sobre a intervenção, o prefeito de Exu, Junior Pinto Saraiva (PSDB), reconheceu a importância dos aquíferos da Chapada do Araripe como uma importante "caixa d’água" para outras regiões do Semiárido. "Temos que ter cuidado com nossos aquíferos e preservar áreas ambientais para garantir água no futuro, especialmente no Sertão, onde já enfrentamos grandes dificuldades hídricas", afirmou.
Passado o Encontro, o manifesto adentrou uma campanha virtual para que o tema seja debatido no Senado. A proposta é fazer avançar reconhecimento e proteção da Chapada do Araripe como patrimônio imaterial da humanidade. A petição quer proibir a prática de monoculturas extensivas na região da Chapada do Araripe, em razão dos impactos negativos que essa atividade vem causando ao meio ambiente e à população.
redegn com informa BDF Foto redes sociais
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