Artigo: Uma democracia denominada samba

Até o governo de Getúlio Vargas nos idos anos de 1930/1940, o samba era criminalizado no Brasil. Quem andasse com pandeiro na rua poderia ser preso por vadiagem, ou seja, "coisa de negro" com pena de até 30 dias de reclusão. Nesse tempo, os negros tinham que se refugiar para poder executar, tocando e cantando esse ritmo que hoje é exportado para o mundo todo. Aí vem o questionamento: qual a razão em obstar essa manifestação espontânea vinda da alma? 

Por óbvio que, se tratando de manifestação popular, originária do povo outrora escravizado (entenda-se, povo negro), isso desagradava a sociedade burguesa, racista, muito forte e dominante no Brasil, cujos focos históricos permanecem com pilares bem erguidos nos dias de hoje. Por que falo do samba? Porque é o instrumento que, juntamente com o futebol, mais divulga o Brasil em todo o mundo. Não há qualquer canto do planeta que, quando se fala em Brasil, a imediata referência não seja o samba.

Hoje, quem frequenta uma escola de samba, notadamente no Rio de Janeiro, berço do carnaval, perceberá que não há mais aquela predominância quase absoluta de negros. Nota-se que não há negros em todos os setores das escolas de samba, a começar pela presidência da  Liga Independente das Escola de Samba do Rio de Janeiro (Liesa), passando pela presidência da maioria absoluta das escolas, quando não nos deparamos com mestres de bateria e demais dirigentes, sem deixar de observar as rainhas de bateria que são escolhidas dentre notáveis mulheres destacadas pela grande mídia, não oriundas das comunidades originárias dessas escolas. 

E o que significa tudo isso? Um avanço, uma integração, uma tomada de espaço, uma invasão e apropriação cultural ou uma pretensa democracia cultural? Por isso, o samba deve ser olhado como um dos mais fortes instrumentos culturais deste país, porque, além de ser livre, ele é libertador. Ergue socialmente pessoas oriundas das camadas menos favorecidas ao ponto de integrá-las aos mais altos níveis da nossa sociedade. 

Não há dúvidas de que houve aquilo que podemos chamar de evolução de conveniência social — evolução esta capitaneada, pasmem, pelo samba, pois, sem programação efetiva ou proposital, conseguiu fazer com que as pessoas das mais diversas camadas da sociedade, em algum momento, estivessem, e ainda estejam, juntas para um momento de pura descontração ou para reflexão de como manter viva essa chama cultural. Ou, ainda, para construir novos encaminhamentos em busca do fortalecimento dessa cultura popular que, por muito tempo, foi rechaçada pela elite brasileira que sempre se apossou ou desprezou a força oriunda do povo. 

O samba, pois, que hoje é idolatrado — até mesmo por aqueles que durante quase um século pretendiam dizimá-lo — agora é composto, inclusive, por membros da elite brasileira que chegam a usufruir das benesses, as mais diversas, e, por conta dele, do samba, "desfilar" nas mais poderosas mídias internacionais com estilo e pose de sambista, sem a pecha do homem ou da mulher do morro, da favela, ou, de forma doce e poética, da comunidade (eufemismo). 

Toda vez que sou convidado a comparecer a alguma roda de samba ou simplesmente a um samba, já vou curioso para ver que tipo de frequentadores vou encontrar no evento, uma vez que essa frequência não mais se restringe às pessoas negras, como há algum tempo. Pelo contrário, dependendo do local, os negros serão minoria, e, por mais curioso, até os músicos já não mantêm a sua maioria absoluta de negros. Dadas suas raízes, assim vislumbro com orgulho de que se trata de mais uma vitória da população negra, pobre e até favelada. 

O samba foi e continua sendo o combustível de crescimento de uma camada sofrida e injustiçada da "nossa" sociedade. É a chave que abre portas inimagináveis há algum tempo e que, hoje, parecem estar à espera de mais um sambista para o enriquecimento dessa cultura popular.

Quando em algum encontro de pessoas promovido com a única intenção de fruir prazer na curtição do samba, o que se observa em cada semblante é a pura felicidade, liberdade, harmonia, tranquilidade. Até parece que estão programados para tal. Ante o exposto, pergunto: o samba é republicano, democrático ou apenas, coisa de negro? O samba é a raiz da liberdade! 

Jaime da Rosa SantosMúsico, servidor público federal aposentado, advogado

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