Pobreza do tempo: políticas públicas ignoram trabalho não remunerado realizado em casa

O Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades (MAD), da Faculdade de Economia e Administração (FEA) da USP, vem desenvolvendo pesquisas sobre a utilização do tempo, especificamente em relação a distribuição de atividades, como trabalho remunerado, não remunerado e deslocamento. O estudo, em seus resultados, revelou a importância do trabalho reprodutivo, ou seja, aquele que mesmo invisível, gera bens e serviços para a sociedade, geralmente incluído no trabalho de cuidado.

Segundo Letícia Graça, pesquisadora do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da Faculdade de Economia da USP e uma das autoras do artigo, o trabalho do cuidado inclui atividades diretas e indiretas, como alimentar uma pessoa idosa ou lavar roupa; esse tipo de trabalho é majoritariamente realizado por mulheres e, principalmente, pelas mulheres pretas.

“Esse trabalho todo é realizado em peso pelas mulheres, incluindo um recorte de raça e classe também. Ele é indispensável para a capacidade produtiva e para o bem estar social, porque sem a realização dessas atividades, realizadas principalmente no âmbito privado, não temos a promoção do bem estar social e das capacidades produtivas gerais.”

A pesquisadora ressalta que, para o entendimento profundo do problema, o conceito de “pobreza de tempo” é essencial por enquadrar o mapeamento das atividades de serviço não mensuradas, às quais, por isso, não são atribuídos valores e, assim, não são incluídas em medidas de políticas públicas e de retribuição rentária. “Quando a gente tem dentro da dinâmica capitalista atividade que não tem o seu valor atribuído, essas atividades são invisibilizadas e aí você tem uma série de faltas de políticas que visem serviços, que visem infraestrutura, por exemplo, para dar conta de dar um apoio maior para essas atividades, para garantir que essas atividades sejam realizadas de uma forma que as pessoas que gastam o tempo realizando essas atividades não vão deixar de estar dentro da esfera do trabalho produtivo, ou seja, aquele trabalho remunerado, que elas vão ter políticas voltadas para essas atividades.”

Para Letícia, a falta de metodologia e acesso a dados intensifica a invisibilidade das pessoas, especialmente mulheres, que estão nesse meio e que, por estarem absorvidas pelos serviços de cuidado, não apenas estão submetidas a falta de remuneração, mas também não possuem tempo para outras atividades. E, apesar da Política Nacional de Cuidados ter sido recentemente sancionada pelo presidente Lula, a pesquisadora reforça que os dados ainda são raros e, muitas vezes, incorretos.

Disparidade de gênero-Ainda sobre a questão de gênero, Letícia ressalta a disparidade entre homens e mulheres, principalmente pretas, na realização do trabalho do cuidado: “Vemos que as características sociodemográficas desse tempo gasto com o trabalho não remunerado do Brasil são muito díspares entre homens e mulheres. As mulheres negras gastam 24,1 horas por semana, enquanto as mulheres brancas gastam um pouco menos 22,3 horas por semana. Os homens negros e os homens brancos gastam em média 12,5 horas por semana”.

Além destes, a renda per capita é mais um diferencial essencial. Segundo dados, aquelas pessoas que têm a renda familiar per capita mais baixa gastam 28 horas em trabalho não remunerado. Já os mais ricos, com renda familiar acima de 3.936 reais, gastam 17 horas em trabalho não remunerado por semana. Para a pesquisadora, os dados são discrepantes e mostram a desigualdade brasileira: “Se você comparar com alguns outros países da América Latina, você verá que é um número que está muito diferente e muito abaixo da mediana mundial”.

Para Letícia, a melhoria na coleta de dados é necessária para a melhor cobertura sobre o problema, que permitirá o planejamento de políticas públicas mais abrangentes para as classes mais afetadas pela invisibilização. “Essa pesquisa de uso do tempo precisa ser feita a cada cinco anos, complementando a PNAD contínua, principalmente a visibilização do trabalho não remunerado das mulheres negras e das mulheres rurais e o próximo passo, politicamente, é a gente entender como, para além de visibilizar, também remunerar, e como tirar essa mulher do exercício de um trabalho não remunerado que limita ela em tantos aspectos da sua vida, combatendo assim essa que a gente chama de pobreza multidimensional.”

Jornal da Usp Foto Ilustrativa Agencia Brasil