Assim como Bento Santiago – o Bentinho, seduzido pelo olhar “oblíquo e dissimulado” de Capitu –, Machado de Assis gostava de inventar histórias a partir do que via, imaginava e sentia, histórias que convenciam e intrigavam. E instigam leitores desde finais do século 19. Já a sua Helena se chamava Carolina Augusta.
Os vizinhos fluminenses se assustariam se Machado, tal qual Quincas Borba, decidisse nomear seu cachorro em sua própria homenagem e dissesse, em tom casual, que “o Machado estava com fome”. E sua trajetória de vida, de maneira semelhante à de Brás Cubas, não foi finalizada com filhos para partilhar seu brilhante legado.
Estima-se que o Bruxo do Cosme Velho, apelido dado ao autor realista por Carlos Drummond de Andrade e incrementado pelo bairro onde Machado viveu praticamente toda a sua vida, tenha escrito mais de 800 obras, entre romances, crônicas, contos e coletâneas de poemas. Ainda assim, teve tempo de ajudar a fundar a Academia Brasileira de Letras (ABL), atuar como jornalista e, também, como tipógrafo.
O colóquio internacional Machado de Assis: Tradução, Edição e Circulação Internacional, entretanto, tratará de uma conquista de Machado de Assis que ocorreu após sua morte: a tradução de seus romances para o inglês e o espanhol. Sediado na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP, nos dias 19 e 20 de outubro, o evento contará com a presença de estudiosos, tradutores e autores para dissecar a circulação das obras machadianas no exterior.
“A importância de entender Machado é que ele tem, ao seu redor, grandes questões da humanidade e da vida no Brasil sendo discutidas”, explica o idealizador do colóquio, professor Hélio de Seixas Guimarães. O evento faz parte de um projeto, coordenado pelo professor, que busca entender como se dá a tradução para o inglês das obras machadianas.
“É com a obra em inglês que outros países passam a se interessar por traduzir também em seus territórios, por isso o enfoque”, pontua Guimarães, que é professor do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
A pesquisadora americana Flora Thomson-DeVeaux foi a responsável pela tradução de Memórias Póstumas de Brás Cubas nos Estados Unidos. Publicada em 2020 pela gigante do ramo Penguin Classics, o livro esgotou em menos de um dia nas duas maiores redes de venda de livros do país: Amazon e Barnes and Noble. De acordo com a tradutora, o sucesso não era esperado nem por ela nem pela editora.
“Acredito que o grande número de vendas nesse primeiro momento tenha se dado por dois motivos: os elogios de Dave Eggers para a The New Yorker e um tweet meu que viralizou. O contexto da publicação também foi muito importante”, afirma Flora, que vive no Rio de Janeiro.
O livro foi lançado enquanto o distanciamento social decorrente da covid-19 mantinha grande parte das pessoas em suas casas. Nesse momento, os protestos pela morte de George Floyd aconteciam de maneira assídua nos Estados Unidos. “A possibilidade de ler algo escrito por um artista negro latino-americano e, assim, se entreter e aprender sobre a causa pareceu tentadora para os americanos”, contextualiza Flora, que será a responsável pela abertura do evento na USP.
O interesse dos estadunidenses pela literatura da América Latina não é novidade: ainda na década de 1950, o Estado americano passou a impulsionar a tradução de obras desses países. “Desde a Guerra Fria, houve uma aproximação cultural e política entre o norte e o sul do continente pelo que ficou conhecida como ‘política da boa vizinhança’”, explica ao Jornal da USP a professora de Princeton Deborah Cohn. “Antes desse interesse do governo em incentivar a vinda desses livros, era muito caro para as editoras fazerem essas traduções porque era preciso contratar pessoas para fazer a propaganda desses autores, que quase ninguém conhecia e, portanto, não comprava.”
Deborah participará do segundo dia do evento, quando serão abordadas as traduções em espanhol das obras de Machado de Assis. Também, estudiosos dos livros em outras línguas modernas estarão presentes para explicar o impacto do autor em seus respectivos países.
“Traduções ajudam os brasileiros a reverem sentidos de nossa própria história”, afirma o professor Hélio Guimarães. “No colóquio, vamos procurar compreender o âmbito internacional das traduções e as limitações e permissões sociopolíticas para que elas ocorram. Machado é um autor que já percorreu um caminho de sucesso, e ainda tem muito a conquistar.”
Texto publicado no Jornal da USP: Duda Ventura. Arte: Guilherme Castro
Jornal da USP
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