Visita de Paulo Freire a Juazeiro na década de 1980 contribuiu para projeto de educação popular 

O educador Paulo Freire tinha uma relação afetiva com a cidade de Juazeiro e da região norte da Bahia. A convite de Dom José Rodrigues de Souza, bispo da Diocese de Juazeiro, Paulo colaborou para o processo de educação popular com cursos de formação para professores, lideranças comunitárias e do movimento popular e cultural da cidade.

A primeira visita foi em 1983, com a realização de curso para 25 monitores, que faziam trabalhos comunitários promovidos pela Diocese. Em 1984, trabalhou com 11 círculos de cultura, que funcionavam em três bairros juazeirenses e em oito cidades da região, onde a Diocese atuava. Em 1986, ele retornou a Juazeiro para acompanhar os trabalhos desenvolvidos tanto pelas pastorais da Diocese como  pelos movimentos sociais. 

Em uma dessas visitas do educador, em 1983, Marta Luz, filósofa, pedagoga e a principal radialista da Rádio Juazeiro entrevistou Paulo Freire, no programa Juazeiro Panorama de grande audiência na cidade. Marta Luz até hoje é lembrada por comunicadores, professores e comunidade juazeirense pelos programas "E nós para onde vamos?", que tinha a participação de intelectuais da época, "Luz, Mulher" e "Pagão,", entre outros. 

Neste ano, que marca o centenário de nascimento de Paulo Freire, Marta relembra que a entrevista com o educador foi um momento muito significativo na cidade e recebeu a acolhida da população. "A entrevista foi adorável, sem tensões, no recíproco estar à vontade, as perguntas fluíam e as respostas eram um verdadeiro banho de cultura dado pelo patrono da educação brasileira. A rádio Juazeiro teve uma audiência fechada durante a entrevista", conta Marta Luz.

Não era a primeira vez que Marta se encontrava frente a frente com Paulo. Em 1962, ela fez um curso promovido por ele na Faculdade de Filosofia do Recife, e foi extremamente enriquecedor para a sua vida profissional no exercício do magistério por nove anos na cidade de Juazeiro.

Então, realizar a entrevista com o educador por intermédio do Dom José Rodrigues, foi um momento luminoso na trajetória como radialista e professora, como relembra  com entusiasmo:

- Fui no carro buscá-lo para Rádio Juazeiro e ele disse: 'O Dom José falou que você é gente boa, politizada, que gosta muito de poesia e declama muito bem, isso é verdade?'. Bem, eu gosto muito de poesia', respondi.

- Recita pra mim?, ele disse.

- Recito sim, vou recitar uma poesia de um poeta pernambucano muito querido para mim: Manuel Bandeira, respondi.

- Eu também gosto muito do Bandeira.

Assim, a entrevista foi um diálogo, com informações sobre a vida de Paulo Freire no exílio no Chile e como produziu o livro Pedagogia do Oprimido, cuja obra foi traduzida em 17 idiomas, e que retrata o método de alfabetização de jovens e adultos, a partir da experiência inovadora em Angicos, Rio Grande do Norte, quando alfabetizou 300 camponeses em 40 dias. Sobre o método, Paulo confidenciou que se referia a uma certa compreensão do processo educativo, especialmente prática transformadora. "A prática que eu defendo é o da liberdade do educando, é o da liberdade do educador. É do respeito que o educador deve se impor a si mesmo, o respeito ao educando para que ele também se possa respeitar, no sentido que o educando se vá construindo como gente em lugar de ir se reprimindo e virando coisa. A educação deveria ser exatamente isso, uma prática, uma experiência de criação e recriação da própria vida".

Marta relembra a capacidade de Paulo Freire em responder perguntas complexas sobre a realidade brasileira com simpatia e espontaneidade. "Ele era imensamente simpático e comunicativo, o rico conteúdo pedagógico, a vivência de quem estudava, o respeito pelo ser humano, a interação com a vida, a injustíssima experiência dele ter sido exilado. Particularmente, destaco a crítica ao autoritarismo em si, e no processo da educação, quando ele mostra claramente que o autoritarismo é a destruição de tudo que pretenda ser ato de ensinar e educar'.

Na entrevista, Paulo demonstra que não cabe autoritarismo nas relações entre professor e educando. "Eu te ajudo como educador e tu como educando para que tu se faça e refaça. Ao ajudar que tu te refaças, tu me ajuda a que eu me refaça também. Esse aspecto acho fundamental de como eu entendo a educação", esclareceu Paulo. 

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Para o professor e pesquisador Francisco Assis da Silva a presença de Paulo Freire junto com Dom José foi essencial para o fortalecimento da educação popular de Juazeiro.  Dom José Rodrigues fundou um acervo bibliográfico sob orientação de Paulo Freire, que conta com 30 mil volumes, uma rica biblioteca com livros de autores nacionais, internacionais e regionais, atualmente localizada na biblioteca da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), campus Juazeiro. 

Muitas instituições se inspiraram na parceria do bispo com Paulo Freire, devido a sua maestria na educação da cidade. O curso de Pedagogia da Uneb, campus Juazeiro, tinha habilitação em Educação de Jovens e Adultos, e participou ao longo dos anos de programa de formação para qualificar profissionais e estudantes para combater os índices de analfabetismo na região Norte. 

Para Francisco, através desses desdobramentos de educação popular, "Paulo Freire e Dom José Rodrigues em Juazeiro acabaram sendo precursores da educomunicação no Vale do São Francisco". O pesquisador destaca ainda a criação da Pastoral da Comunicação que incentivou uma política de comunicação popular em oito municípios da região. Para Francisco, o legado do patrono da educação brasileira para a cidade ainda é muito presente na formação de educadores e de movimentos populares. 

A entrevista de Marta Luz com Paulo Freire também é um desses legados, como memória presente na cidade. O educador se despediu da população de Juazeiro, deixando uma mensagem de esperança: "termino agradecendo pessoalmente ao próprio momento desta conversa que tu me ofereceste. Ao fazer esse agradecimento, diria aos meus colegas e as minhas colegas, professores e professoras dessa área que a emissora cobre, professoras primárias, professoras leigas, professoras que não passaram pela escola normal, não importa, minhas colegas e meus colegas educadores, eu deixo aqui um grande abraço, mas um abraço não formal, um abraço de esperança, em que, apesar de tudo e quando nada seja favorável ter esperança, que a gente, portanto, continue a ter", diz Paulo Freire a Marta Luz.

Texto por Mariana Brasileiro email: [email protected]

Mariana Brasileiro/