“Navegar é preciso”: o canal do Guaxinim e o trânsito das populações ribeirinhas no Médio São Francisco

Entre os vários fatores estratégicos envolvidos no complexo e gigantesco universo natural do Rio São Francisco, está o seu uso como meio de transporte de mercadorias e de gente, por ser uma proveitosa via natural. Sua característica de grande curso d’água navegável que une partes longínquas do Brasil, em plena hinterlândia, rendeu-lhe o título de rio da integração.

A despeito do histórico brasileiro de investimentos em grandes rodovias paralelas a locais navegáveis, a Bacia do São Francisco preserva importantes atividades de navegação e em alguns trechos o rio é a principal via de acesso das populações ribeirinhas. É o caso do canal do Guaxinim em Xique-Xique (BA), na região fisiográfica do Médio São Francisco, um canal natural de 3.600 metros por onde circulam dezenas de barcos todos os dias.

O canal do Guaxinim é um braço do Rio São Francisco que faz a ligação do leito principal com a Ipueira, que banha o município de Xique-Xique e onde fica o cais. Passam por ele embarcações vindas de aproximadamente 60 ilhas de três cidades: Pilão Arcado, Barra e da própria Xique-Xique, transportando pessoas, produtos comerciais, animais domésticos e até outros meios de transporte, como bicicletas e motocicletas. Nas ilhas há pequenos produtores de batata, mandioca, manga, limão e alguns tipos de hortaliças, que escoam sua produção no Mercado Municipal e são responsáveis por parte do abastecimento alimentar de Xique-Xique.

Algumas famílias também tem criações de aves, caprinos e bovinos, igualmente comercializados no mercado perto do cais. O dia mais movimentado da semana é a sexta-feira, por ser o dia da feira na cidade, mas há trânsito diário com estudantes que vão para as escolas em barcas locadas pelo poder público e embarcações de tamanhos variados com trabalhadores, pessoas em busca de atendimento médico e outros serviços.

O canal fica a montante do Rio São Francisco, com a Cidade da Barra ao sul e Sobradinho ao norte. O curso d’água se desenvolve entre a Ilha do Miradouro e a Ilha do Gado Bravo e atualmente possui cerca de 40 metros de largura, 2m40 nos trechos de maior profundidade e 1m50 nos mais rasos. A fauna ao redor é marcada pela presença de garças, saracuras, mergulhões, marrecos e nas suas águas singram surubins, curimbatás, dourados, piranhas e piaus, que costumam servir de alimento para as famílias de pescadores que exercem o ofício próximo às ilhas ou no leito do rio.

A vegetação no entorno é típica da caatinga, com calumbis, canafístulas e pajeús. Especialmente durante a cheia do rio, entre os meses de outubro e abril, a região possui beleza cênica e o canal dá acesso à uma praia usada como área de lazer, batizada com o sugestivo nome de “Sossego do Painho”, nas margens da Ilha do Miradouro.

Na Ilha do Miradouro também está a igreja reconhecida como marco da ocupação que deu origem ao município de Xique-Xique, sendo o canal do Guaxinim um importante agente histórico local: há mais de 100 anos, os primeiros habitantes rompiam suas águas com paquetes e foram expandindo as ocupações das margens do rio ao passo que a região crescia economicamente.

“Há algumas décadas o canal era mais estreito e mais fundo e uma via de navegação muito propícia. A navegação pelo canal do Guaxinim é uma prática secular, antes feita com paquetes e hoje até com jet skis”, explica Roberto Rivelino Souza, membro da Câmara Consultiva Regional do Médio São Francisco e da Secretaria de Meio Ambiente de Xique-Xique. Em seu perímetro estão os distritos de Esperança, Jurema e seu homônimo, Guaxinim.

O barqueiro Joaquim dos Santos, de 58 anos, estima percorrer todo o percurso do canal em aproximadamente 40 minutos a bordo da sua Diplomata, uma embarcação de médio porte que presta serviço de transporte para a população. Hoje aposentado, ele trabalha na localidade desde 1985 e afirma a importância da hidrovia na vida dos moradores: “Tudo que a gente faz aqui é através desse canal, quem mora na zona rural e quer ir na cidade fazer feira, ir ao médico, vender ou comprar alguma coisa, tem que passar por ele”, explica Joaquim. “Quem já viu ele seco sabe como foi sofrido”, completa, se referindo aos anos de 2013 e 2014, quando o Guaxinim ficou totalmente seco, impedindo a passagem de embarcações de médio e grande porte. Moradores relatam que à época era necessário atravessar o canal a pé e aos barqueiros restava arrastar as canoas pequenas até o leito principal. “Foi um período crítico, de perda total do canal, resultado de décadas de assoreamento e nenhuma intervenção consistente desde a década de 80. A vida dessas populações ficou muito difícil”, recorda Roberto Rivelino.

Em 2020, com o objetivo de aumentar a profundidade do canal e reestabelecer seu escoamento hídrico natural, a Prefeitura Municipal de Xique-Xique realizou a dragagem do canal do Guaxinim. A iniciativa está inserida no plano de ação “S.O.S Lagoa de Itaparica”, pactuado em 2019 entre o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), IBAMA, INEMA, CODEVASF, Ministério Público e outras entidades. A intervenção foi bem sucedida e hoje o canal está em plena atividade mesmo nos meses de seca, entre maio e outubro. Além de ser considerado a principal porta de entrada da cidade, o canal do Guaxinim guarda uma importância grandiosa para o ecossistema da região: é através dele que a água vinda do leito principal chega até a Ipueira e desta para abastecer a Lagoa de Itaparica, o maior berçário natural de peixes do São Francisco. “Os peixes que nadam rio acima atravessam o Guaxinim para desovar na Lagoa de Itaparica e depois os maiores retornam pelo mesmo caminho até o leito principal. É um ‘caminho’ na água não apenas para os seres humanos”, explica o brigadista do IBAMA, Ederaldo da Silva Lopes, de 36 anos.

Ederaldo é um dos moradores da Comunidade Fazenda Paulista, pertencente ao município de Barra, onde habitam cerca de 65 famílias. O saber-fazer atinente à navegação é aprendido desde a infância, como demonstram alegremente Tales e Daniel, respectivamente com 6 e 7 anos: o irmão mais velho de Tales é proprietário de uma embarcação usada para transporte e pescaria e as crianças observam admiradas sua lida diária nas idas e vindas de Xique-Xique: “Quando eu crescer, quero pilotar barco e moto”, revela Tales. O pescador e carpinteiro aposentado, Ângelo Gonçalves, de 64 anos, sintetiza o Canal do Guaxinim como a “nossa passagem de comunicação com o mundo”. “O rio São Francisco é a principal, quando não a única fonte de sustento de todas as pessoas daqui. E o que nós produzimos é transportado através desse canal, sem ele o acesso seria muito mais difícil”, explica Ângelo.

O canal do Guaxinim constitui capítulo fundamental na história da navegação no Médio São Francisco e é representativo do rio como essa paisagem de homens e mulheres em movimento. Mais além, a navegação pelas águas do Rio São Francisco está nas bases da formação da sociedade brasileira e as populações ribeirinhas, secularmente marginalizadas, guardam as memórias dessas águas.

A reportagem é de Mariana Carvalho. Fotos: Kel Dourado

CBHSF