"O ministério da Saúde está ocupado por gente que nunca trabalhou com política pública, não sabe o que é SUS", diz José Carlos Temporão, ex-ministro da Saúde

Após tomar posse em cerimônia fechada e fora da agenda oficial, o médico cardiologista Marcelo Queiroga assume o comando do Ministério da Saúde em meio ao pior momento da epidemia da Covid-19, com situações de colapso na rede de saúde em diferentes estados, lista de espera para obter vagas em UTIs e crise na oferta de medicamentos essenciais a pacientes graves.

Além desses problemas, o novo ministro deve ter como missão acelerar o plano de vacinação contra a Covid e lidar com o impacto já presente no sistema de saúde por atendimentos represados.

Gestores públicos e privados, médicos e outros profissionais da saúde ouvidos pela reportagem são unânimes: só com coordenação nacional, autonomia para tomar decisões técnicas, união da sociedade civil e ajuda internacional haverá alguma chance de enfrentar a crise, que deve continuar nos próximos meses.

Um ponto crucial levantado por todos é a necessidade de o Ministério da Saúde voltar a ter técnicos experientes em seus principais quadros.

"Essa militarização baixou dramaticamente a qualidade e a capacidade de intervenção. O ministério está ocupado por gente que nunca trabalhou com política pública de saúde, não sabe o que é SUS", diz José Carlos Temporão, ex-ministro da Saúde, médico sanitarista e pesquisador da Fiocruz.

Para ele, se a pasta tivesse uma equipe técnica competente com bons gestores, muitas das crises, como falta de oxigênio e de drogas para intubação, já estariam sanadas.

Francisco Balestrin, presidente do SindHosp (sindicato paulista dos hospitais privados, clínicas e laboratórios), vai na mesma linha. "É preciso que retornem a competência técnica operacional do ministério. Sem isso, teremos um novo 'vice ministro da Saúde' sem ação, sem equipe e sem resultados."

A ausência de coordenação nacional das ações de enfrentamento da epidemia é apontada por secretários municipais e estaduais de Saúde como um dos principais problemas enfrentados nos últimos meses.

Sem apoio e diretriz federal, estados e municípios tiveram que tomar boa parte das decisões por conta própria.

"Precisamos que ele assuma com senso de urgência, porque todos os dias estamos perdendo milhares de vidas", diz André Longo, secretário de Saúde de Pernambuco e vice-presidente do Conass, conselho que reúne gestores estaduais da área.

"A primeira questão é resgatar o papel de coordenador nacional e gestor federal do SUS. Precisamos ter o sentimento de que há uma coordenação nacional dessa crise. Se pudesse unir nessa coordenação Executivo, Legislativo e Judiciário para que medidas sejam adotadas, seria importante."

César Fernandes, presidente da AMB (Associação Médica Brasileira), diz que o país precisa de discursos em consonância, pautados por evidências.

Para Gulnar Azevedo, presidente da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), a articulação da pasta da saúde com o Ministério da Economia também seria importante para a tomada de ações que permitam o isolamento social, como um auxílio emergencial de pelo menos R$ 600 por mês até o fim da pandemia e ajuda às empresas contra falências e demissões.

Diante da escassez de vacina, uma das saídas, segundo os especialistas, é trabalhar na diplomacia da saúde. "Buscar entre os países amigos doses adicionais", diz Temporão.

Para Rubens Belfort Júnior, presidente da ANM"(Academia Nacional de Medicina, além de tentar todas as vias diplomáticas possíveis para obter mais vacinas o quanto antes, o país precisa se preparar para a chegada delas, com logística e infraestrutura. "Tem lugar que não tem freezer, geladeira. Precisamos de união nacional para que, assim que chegarem, essas vacinas sejam imediatamente usadas."

Mas, para isso, ele defende que o Ministério da Saúde levante todas as necessidades de estados e municípios e envolva a sociedade civil na busca de soluções.

Para André Longo, do Conass, é fundamental que se monte um plano nacional de garantia de insumos, como medicamentos e equipamentos que já faltam em alguns estados e distribuição de cilindros de oxigênio para estados em maior dificuldade.

Especialistas dizem que, neste momento, o novo ministro não terá outra saída senão estimular a adoção de medidas restritivas de circulação.

"Regiões podem ser fechadas, mas tem que fechar todo mundo junto, não adianta um município adotar lockdown e o outro não", diz Temporão.

"Temos que fazer uma análise crítica sobre como adotar essas medidas restritivas. Por regiões? Por estados? Por setores? Falta uma discussão objetiva e baseada em dados. Quais as melhores estratégias que funcionaram em outros países? O que podemos aprender?", diz Belfort Júnior.

Sobre a crise da falta de medicamentos para intubação, Gonzalo Vecina Neto, médico sanitarista e professor da USP, diz que, diante do esgotamento da capacidade produtiva nacional e da dificuldade de importação, tem discutido com anestesistas uma alternativa aos relaxantes musculares e anestésicos tradicionalmente usados.

"Talvez uma saída é investir nos anestésicos alogenados, que são gases anestésicos. São mais difíceis de usar, mas os anestesistas sabem utilizar esse produto e ele não está em falta no mercado."

Folha Press