Memória:  Zuza Homem de Mello deixa  o mapa bem orquestrado da música brasileira

A  memória  serve ao presente  - o que explica  em grande medida a relevância  que ela adquiriu  para além de círculos especializados. No mais, preservar a memória da cultura de um povo é mapear e enriquecer o patrimônio de suas linguagens.

Quando o assunto é Música Popular Brasileira o primeiro nome que já está na história há mais de meio século chama-se Zuza Homem de Mello que saiu de cena da vida real esta semana. Talvez exista alguém que conheça música tanto quanto o jornalista e crítico que estava na ativa desde 1957, mas é bem difícil.

Zuza presenciou o surgimento de movimentos importantes que desenharam os trilhos da MPB como a Bossa Nova, a Jovem Guarda e a Tropicália. Agora imagine que ainda jovem quando foi estudar musicologia nos EUA, em  novembro de 1957, no Carnegie Hall, assistiu algo que sabe lá Deus que importância teve na vida dele: um espetáculo que uniu uma constelação de músicos formada pelo jovem Ray Charles, Dizzy Gillespie, Sonny Rollins, Chet Baker, Thelonius Monk, John Coltrane e, para terminar, Billie Holliday.

No Brasil, Zuza, mais que apaixonado por jazz, marcou a história da música brasileira por ajudar a lapidar e conceber trabalhos históricos ao lado de Elis Regina, Milton Nascimento e Gilberto Gil. Atuou na TV e no rádio chegando a apresentar o programa "Jazz Brasil", na TV Cultura. Não mais como instrumentista da noite, lançou-se como técnico de som, mas com um pensamento de captar também a alma dos programas e das plateias em um momento único da TV Record, em produções como O Fino da Bossa, Jovem Guarda e Bossaudade.

Há dois anos sua trajetória foi contada no documentário "Zuza Homem de Jazz", dirigido por Janaina Dalri que resgatou sua época morando nos EUA, para estudar na prestigiada escola Juilliard School. Zuza tinha um conhecido humor inteligente, sempre carregado de informações para cada interlocutor. "Para todos os efeitos eu tenho músicas nas veias", costumava se definir. O papel de pesquisador e de músico se misturava vez ou outra na rotina do Zuza escritor, jornalista, contrabaixista e técnico de som.

Em entrevista ao Itaú Cultural anos atrás afirmou que, antes de se profissionalizar no campo da pesquisa, tocava todas as músicas que ouvia na rádio como Luiz Gonzaga, Mário Reis, Ary Barroso e Dorival Caymmi. "Eram as músicas que fizeram minha cabeça. A minha grande universidade na música popular era ouvir rádio".

Quando voltou da temporada americana, a Bossa Nova o pegou da cabeça aos pés. Foi amigo de todos os seus integrantes, ouviu todos os discos, dirigiu shows e entrevistou o elenco "top" do movimento banquinho e violão. Para ele, João Gilberto era uma espécie de papa da batida bossanovista. Menos de uma semana antes de morrer, Zuza pôs ponto final na biografia que estava escrevendo sobre o baiano de Juazeiro(BA), assunto que o deixava emocionado.

Sempre que fazia audições do álbum Amoroso, que João lançou em 1977, dizia que não conseguia ouvi-lo sem ir às lágrimas. Quando os pais entenderam que não valia a pena insistir para que ele seguisse outro caminho foram direto ao assunto quando o jovem chegou em casa na madrugada após baladas musicais com um instrumento debaixo do braço:  "Se é assim, prepare-se. Você vai estudar".

Em sua trajetória, uma coisa certa era que ele não ouvia música só para ativar as emoções biológicas. A cada audição degustava, parava, analisava letra, arranjo, estilo, ritmo e tudo que esta arte possibilitou aos seus ouvidos dos mais apurados. "Meu papel é ensinar as pessoas a aprender a ouvir." Para ele, ouvir bem uma música, com tudo o que ela tinha a oferecer, era um ato que poderia salvar um dia, uma história, uma vida.

No contexto presente,  no qual o futuro deixou de representar a promessa de progresso, é coerente que se olhe para trás com avidez e compreensão do valor da memória que a cultura estabelece. A contribuição que Zuza Homem de Mello deixa tem o reforço de seus livros a exemplo de A Era dos Festivais - Uma Parábola( 2003), Eis Aqui os Bossa Nova(2008) Copacabana(2017); e em dois volumes, A Canção no Tempo, em parceria com Jairo Severiano. O depoimento do músico Egberto Gismont para imprensa fotografa bem o papel do pesquisador: "É estaca guardiã, solitária e feliz diante da preservação e respeito a nossa música, nossos músicos, nossos cantores e cantoras, compositores, arranjadores, cantadores de repentes, tocadores de pife, de sanfona, de tarol, de prato e faca raspada". 

*Coluna Texto ao Texto (Letras e sons) por Emanuel Andrade, jornalista, professor do curso de Jornalismo em Multimeios e Doutor em Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP).