Espaço do Leitor: Conto de quarentena

Em frente à pequena banca, a única do bairro, Jônatas lia as capas dos principais jornais daquela manhã de segunda-feira. Uma das manchetes dava conta de que seu time do coração – após longos meses de jejum – vencera de goleada a partida do dia anterior, garantindo participação no campeonato estadual.

Logo abaixo da chamada uma foto grande e colorida mostrava um jogador do time vitorioso correndo freneticamente atrás da bola. "Caramba, até que enfim!", pensou Jônatas. Aquela vitória importava muito para ele, torcedor fanático que há muito não via o time da sua paixão ganhar uma partida. Agora sim, sentia-se de alma lavada!

Jônatas continuava a ler os destaques do dia, mas sem maior empolgação. É que os jornais – afora a notícia da vitória do seu time – não traziam grandes novidades. (O que é de todo compreensível, tratando-se de uma segunda-feira). Mas uma notícia em particular chamou atenção de Jônatas naquela manhã de céu acinzentado. Uma chamada de poucas linhas, no canto inferior direito de um dos jornais, informava que em algum lugar – ele não atentou bem para esse detalhe – uma estranhíssima doença havia contaminado uma aldeia inteira, levando à morte muitos dos seus moradores.

Passadas algumas semanas, Jônatas foi surpreendido com a notícia de que a doença transpusera todas as fronteiras e agora rondava o seu entorno. Um tanto confuso, mas sem perder a sensatez, manteve relativa serenidade, enquanto aguardava o desenrolar dos fatos. Mal sabia ele que o pior estava por acontecer.

Poucos dias após a notícia chegar aos seus ouvidos, um decreto do governo local determinava o bloqueio total de todos os estabelecimentos comerciais, exceto aqueles considerados essenciais. A medida estendia-se também aos bancos, às indústrias, às escolas, às universidades, aos teatros, aos esportes, e até mesmo às igrejas. O decreto estabelecia ainda que todos os cidadãos, indistintamente, se recolhessem em suas casas, em rígida e absoluta quarentena.

A doença chegara pra valer e, àquela altura, o número de mortos e contaminados alcançava cifras assustadoras, desafiando os homens e a ciência.

Recolhido em sua casa, Jônatas sentia sobre os ombros o peso esmagador da solidão. Considerava-se um exilado dentro do seu próprio lar. Sempre fora bem relacionado, frequentador de bares e amante das rodas de conversa. Vivera toda a vida cercado dos amigos e dos seus. Agora, longe de tudo e de todos, sentia-se às vezes desesperado. Uma noite, em uma conversa de WhatsApp com a namorada, ele chegou a desabafar:

“(...) cá pra nós, acho que cheguei ao meu limite. . . Ñ aguento mais essa vida solitária entre quatro paredes, preso como um condenado. Sem ter para onde ir. Separado de tudo e de todos. Ñ aguento mais ñ. Estou no limite”.

A solidão, quando voluntária, tem o seu valor e a sua grandeza. Que o digam os místicos e os contemplativos de ontem e de hoje. Mas quando imposta, torna-se insuportável e até mesmo torturante. A pessoa cuja solidão lhe foi imposta vive ao mesmo tempo duas prisões perturbadoras: a prisão do vazio e a prisão da indiferença. A prisão do vazio a torna alheia a si mesma. A prisão da indiferença a torna alheia aos seus semelhantes. E ambas a tornam alheia ao próprio ato de viver. Ao afastar as pessoas do convívio social, a doença acabou por afetar igualmente a todos. Uns, de forma física, sacrificando-lhe o corpo; outros, de forma espiritual, sepultando-lhe a autoestima.

Jônatas sentia-se também ele um doente e, à medida que o tempo passava, percebia que o mundo afundava sob os seus pés, como que a tragá-lo por completo. Parecia que a solidão – qual doença mortífera – o matava de fato e sem piedade. Mas ao invés de matá-lo de uma vez, matava-o aos pouquinhos, de maneira torturante.

A doença finalmente chegara ao fim.

Os números da catástrofe eram assustadores e acenavam para um futuro nada animador. Milhões de trabalhadores haviam perdido seus empregos e agora viviam a mercê da própria sorte. A ajuda governamental, além de insuficiente, demorara para chegar. Ainda por cima não conseguira atender a todos.

Debilitado, o serviço de saúde não era capaz de dar conta da enorme procura que se seguira ao fim da pandemia… E o mais grave: dezenas de milhares de concidadãos nossos haviam sucumbido para sempre, vítimas de uma guerra silenciosa mas ao mesmo tempo marcada por ruídos e vaidades as mais diversas.

Decretado o fim da quarentena, Jônatas voltou a rever e a abraçar os seus. Era um domingo de sol e de céu azulado. Almoçaram, confabularam, cantaram e tomaram vinho. Mas, não obstante certo ar de felicidade, já não mais se pareciam com o que foram em outros tempos. Era como se ali todos tivessem morrido um pouco.

Naquele mesmo domingo o time de Jônatas voltou a jogar e, mais uma vez, foi vitorioso.

José Gonçalves do Nascimento

Escritor